sábado, 18 de maio de 2013


Contratação in house “Entre a liberdade de auto-organização administrativa e a liberdade de mercado”

(título retirado de uma obra de Bernardo Azevedo)

Começamos este trabalho propondo-nos o objectivo de um enquadramento geral sucinto, ainda que suficiente, do mecanismo comunitário entre nós já consagrado da “contratação interna”, “relações internas” ou “in house providing” (na linguagem corrente comunitária) e da sua evolução dada a  importância crescente que o instituto tem vindo a assumir na prática jurídica nacional e comunitária, dando maior atenção ao trabalhado pela jurisprudência comunitária, a qual muito tem contribuído para a delimitação do conceito.

Como salienta Bernardo Azevedo, o interesse que este estudo desperta deve-se “ao seu efeito sensível sobre o poder reservado aos entes públicos de proverem à autónoma conformação da respectiva organização interna e, igualmente, ao seu forte impacto sobre os termos a que deve obedecer o relacionamento entre esses mesmos sujeitos públicos e o mercado”.

Importa então tentar delimitar a barreira entre onde o regime a aplicar seja o da contratação pública (pressupondo a necessidade de recurso a contratantes externos) e a partir da qual o caso seja o da contratação  in house (havendo recurso a meios organizativos que substancialmente são internos, não obstante constituírem uma entidade jurídica diferente).

A questão do “in house providing” inseriu-se  originariamente  na questão  da contratação interadministrativa ou da contratação realizada entre entidades públicas ou  entidades adjudicantes, sendo que as diretivas de 2004, na senda da jurisprudência do Tribunal de Justiça, vieram esclarecer que a participação de organismos de direito público como concorrentes em procedimentos pré-contratuais não pode pôr em causa a livre concorrência.

Com a aprovação do  Código dos Contratos Públicos deu-se uma profunda reforma no ordenamento jurídico português, para a qual contribuíram as Directivas 2004/18/CE e 2004/17/CE, ambas de 31 de Março de 2004, por esta via transpostas para o sistema jurídico nacional.

O nosso legislador não se deixou ficar pelas Directivas, acolhendo mesmo a doutrina e jurisprudência mais recentes, entre as quais destacamos, na nossa análise, a consagração no artigo 5.°, n.° 2, do CCP, das relações in-house.

Nesse nº 2 do artigo 5º do CCP, consagra-se então uma  excepção à aplicação da Parte II do Código, com o fundamento de se  estar no âmbito de “relações internas” entre a entidade adjudicante e a adjudicatária. A entidade adjudicante estará assim dispensada de cumprir as regras de concorrência se escolhe realizar ela própria as operações económicas de que carece, no âmbito da sua autonomia organizativa, através de uma outra entidade que funciona como um seu “prolongamento administrativo”.

Para compreender melhor o sobredito, vamos procurar explorar os critérios interpretativos que presidem à definição das relações in-house, que envolvem matérias ainda indecisas pelas jurisprudência comunitária.

O perfil deste instituto foi pela primeira vez desenvolvido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no acórdão Teckal.

O facto do primeiro passo ter sido dado a nível comunitário compreende-se dada a relevância da intervenção do Estado na actividade económica no âmbito da concretização do Mercado Único, visto os contratos públicos influírem no Produto Interno Bruto dos Estados-Membros, levando então a essa necessidade de regulamentar as matérias que lhe dizem respeito.

Explica-se então a imposição de procedimentos específicos de contratação pública, como forma de garantir a liberalização do mercado e, assim, assegurar a concorrência efectiva entre os operadores económicos, mas de forma a que não se alcance mediante o sacrifício da economia e eficiência da auto-organização administrativa.

Como sabemos e como refere Pedro Gonçalves, sob o mote de uma «modernização administrativa», deu-se um pouco por toda a Europa um complexo processo de «empresarialização», que, por vezes, passa pela «privatização das formas organizativas da Administração Pública», com as dificuldades inerentes de qualificação de diversas entidades.

Susceptíveis a estes movimentos, as Directivas comunitárias procuraram garantir que esta tendência de «fuga para o direito privado» não servisse de expediente para a não aplicação de procedimentos pré-contratuais.

Neste contexto, o instituto da contratação in-house, apresenta-se-nos como um caso paradigmático, merecedor de uma análise cuidada.

Na verdade, como ensina Carlos Vaz de Almeida, “as relações in-house são sintomáticas da crescente adopção pela Administração de formas jusprivatistas que escapam às estruturas típicas do Direito Administrativo, complexificando assim a aplicação das normas em sede de Direito da Contratação Pública”.

As operações em causa, no entender da jurisprudência comunitária, devem ficar excluídas do regime da contratação pública, visto que a relação estabelecida entra a entidade adjudicante e terceiro resulta numa operação “doméstica” (“in-house”), em que aquela usa meios que, em boa verdade, lhe são próprios, atendendo à falta de autonomia das entidades co-contratantes.

Como foi já foi mencionado traços da contratação in-house foram inicialmente estatuídos pelo acórdão Teckal (que aqui não vamos expor sob pena de nos alongarmos demasiado) no qual a posição jurisprudencial adoptada redundou numa relação in-house, que exonera a entidade adjudicante de abrir um procedimento pré-contratual de natureza concursal, sempre que, havendo um contrato, a entidade adjudicatária, embora daquela diferente sob o plano formal, não seja da mesma autónoma no plano decisório.

O TJCE considerou então indispensável à realização de uma relação in-house o preenchimento de dois requisitos cumulativos:

1) A entidade adjudicante tem de exercer um controlo sobre a entidade com a qual pretenda celebrar o contrato análogo àquele que exerce sobre os seus próprios serviços; e

2) A entidade com a qual seja celebrado o contrato visado realize o essencial da sua actividade em benefício da entidade adjudicante.

Mas o que deve entender-se por “controlo análogo ao exercido sobre os seus próprios serviços” e por “desenvolvimento do essencial da sua actividade em benefício da entidade adjudicante”?

Vejamos.

O critério do controlo análogo à primeira vista, parece pressupor um controlo efectivo, igual àquele que é exercido pela entidade adjudicante sobre os seus próprios serviços.

Vemos que a natureza pública da entidade adjudicatária, sendo um pressuposto requerido, não é por si só uma suficiente para a afirmação de um controlo análogo.

Nesta linha, a ideia exposta no processo Teckal seria baseada no princípio segundo o qual a falta de autonomia de uma entidade em relação à colectividade que detém a sua propriedade afasta a existência de um contrato entre essas duas pessoas, embora estas sejam juridicamente distintas.

Mas na verdade, a nós não nos parece exigível a existência de verdadeiros direitos de controlo (sobre a entidade co-contratante) iguais às que são exercidas pela entidade adjudicante sobre os seus próprios serviços. Basta a existência de controlo suficiente que possibilite que os objectivos de interesse público possam ser obtidos por meio das actividades da entidade co-contratante, sem concorrência de outros interesses alheios ao interesse público, não sendo necessária a identidade entre o controlo sobre a entidade co-contratante e o controlo que a entidade adjudicante exerce sobre os seus próprios serviços.

Assim, a intensidade do controlo análogo deriva da capacidade que a entidade adjudicante tem sobre a entidade co-contratante de compelir esta a prosseguir objectivos de interesse público.

Aqui seguimos a Advogada-Geral Stix-Hack, a qual defende que ”o conceito de controlo análogo deve ser interpretado como um controlo comparável aquele que é exercido sobre os seus próprios serviços, mas não idêntico” pelo que “o critério do controlo análogo deve ser interpretado em sentido funcional e não formal”.

O TJCE no acórdão Carbotermo, julgou ser essencial uma «influência potencialmente determinante», sendo necessária a possibilidade de exercício de influência e não exactamente que a mesma seja exercida.

O Tribunal de Justiça no que diz respeito a quem deve exercer o controlo análogo, veio dizer, no acórdão Coname, que deve ser pela própria entidade adjudicante interessada.

O Advogado-Geral Léger veio acrescentar que nada impede que o controlo seja exercido concertadamente por várias entidades adjudicantes.

O acórdão Tragsa II, de 19 de Abril de 2007 o TJCE reconhece a possibilidade de uma entidade adjudicante que tenha uma participação minoritária, simbólica, na entidade adjudicatária, exercer um controlo análogo sobre esta quando tenha o poder de ordenar a realização obrigatória de determinadas actividades, não obstante ser outra entidade pública a deter uma influência determinante sobre o operador económico em questão.

Não obstante o interesse do estudo deste acórdão, solução obtida não pode ser imperativa e generalizada, o próprio TJCE entende que a doutrina do acórdão Tragsa II deve ser percebida no seu próprio «contexto específico», não sendo pois suficiente que a entidade adjudicatária tenha a obrigação de aceitar e executar os pedidos da entidade adjudicante e assumir a tarefa aplicável aos serviços, sendo também necessário ter em atenção à actividade solicitada e examinar desta forma se essa obrigação também existe em relação aos sujeitos privados.

Quanto ao critério de realização do «essencial da actividade» do co-contratante em benefício da entidade que a controla, a jurisprudência comunitária tem entendido a sua concretização se verifica apenas em relação às actividades que a entidade co-contratante pratica de forma efectiva, não incluindo portanto as actividades que pode levar a cabo em consequência de norma legal ou disposição estatutária.

O Tribunal de Justiça defende dever atender-se a critérios quantitativos e qualitativos, não concretizando a ideia.
           
O que concretiza este elemento parece ser , pelas palavras de Carlos Vaz de Almeida, que a entidade adjudicante encarregue a entidade com a qual pretende celebrar o contrato do exercício ou exploração de determinada actividade que era originariamente da sua competência ou responsabilidade e que a entidade controlada tenha como objecto exclusivo, ou quase exclusivo, a exploração desses serviços ou actividades.

No seguimento da verificação dos dois critérios supra explanados, o TJCE tem entendido que em situações onde a entidade adjudicatária é detida quer por capitais públicos, quer por capitais privados, não se possa verificar o preenchimento do critério do controlo análogo. A mera existência de participações privadas, ainda que minoritárias, em sociedades de capitais públicos exclui a possibilidade de verificação do requisito do controlo análogo.

O TJCE justifica que «a relação entre uma autoridade pública (…) e os seus próprios serviços rege-se por considerações e exigências específicas da prossecução de objectivos de interesse público. Ao invés, o capital privado numa empresa obedece a considerações inerentes a interesses privados e prossegue objectivos de natureza diferente», concluindo que «a atribuição, sem concurso, de um contrato público a uma empresa de economia mista colide com o objectivo da concorrência livre e não falseada e com o princípio da igualdade de tratamento dos interessados (…) na medida em que (…) esse procedimento permite a uma empresa privada com capital nessa empresa uma vantagem relativamente aos seus concorrentes»

Não nos parece certa a generalização pois em determinados casos concretos, a existência de capitais públicos e privados numa mesma entidade pode ser irrelevante para efeitos de verificação de uma relação in house. Assim também a Advogada-Geral Christine StixHackl, afirmou que «o que interessa não é o contexto legal nacional, mas a configuração concreta da situação, o volume da participação da entidade adjudicante ou, pelo contrário, o do sócio minoritário privado também não podem ser por si sós decisivos».

Com foi dito, a figura objecto do nosso trabalho foi consagrada no nosso ordenamento, dispondo o artigo 5.°, n.° 2, do CCP, «o regime da contratação pública estabelecido na Parte II do presente Código também não é aplicável aos contratos, independentemente do seu objecto, a celebrar pelas entidades adjudicantes com uma outra entidade, desde que, cumulativamente: a) a entidade adjudicante exerça sobre a actividade desta, isoladamente ou em conjunto com outras entidades adjudicantes, um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços; e b) esta entidade desenvolva o essencial da sua actividade em benefício de uma ou de várias entidades adjudicantes que exerçam sobre ela o controlo análogo referido na alínea anterior»

Vemos então o legislador português apenas transpôs os critérios expostos no acórdão Teckal, submetendo à verificação dos mesmos a sujeição não dos contratos aos procedimentos pré-contratuais, apenas excluindo, então, do âmbito de aplicação do Código dos Contratos Públicos a fase de formação do contrato e não a sua execução (parte III do CCP).

Apesar da consagração expressa dos conceitos «controlo análogo» e «essencial da actividade», já vimos que não basta, sendo o preenchimento dos critérios aferido casuisticamente e com recurso ao desenvolvimento do entendimento jurisprudencial que tem vindo a surgir sobre esta matéria.

De destacar é o facto de o CCP não exigir, para que se verifique uma relação interna, a inexistência de participações privadas na entidade co-contratante, deixando assim em aberto uma questão irresoluta.

Salientamos ainda que, atendendo à realidade jurídica nacional que contém um conjunto bastante heterogéneo de estruturas jurídicas, isso pode dificultar a aplicação dos requisitos formulados.

Os requisitos constantes do acórdão Teckal têm sido desenvolvidos pela jurisprudência, mas o instituto das relações in-house precisa ainda de sedimentação na ordem jurídica comunitária.

Concluímos então este nosso estudo, que agora no final nos parece suficiente, mas não tão breve como proposto, com o reconhecimento da contribuição do tratamento jurisprudencial para esclarecer esta matéria, que nos parece exigir ainda regulamentação, sob pena de serem cometidos abusos à concorrência e distorções à igualdade.

Maria Rita Cabral Anunciação
nº 22055


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