Publicização dos contratos privados
da Administração
A
publicização dos contratos de direito privado celebrados pela Administração é
um dos argumentos que MARIA JOÃO ESTORNINHO tem vindo a invocar, desde a sua
dissertação de mestrado intitulada “Requiem
Pelo Contrato Administrativo”, para a defesa do desaparecimento da
distinção conceptual entre os contratos administrativos e os contratos
jurídico-privados, pondo fim a essa dicotomia que resultaria numa uniformização
substantiva do regime aplicável aos contratos celebrados pela Administração.
Esta é
também uma das partes abordadas pelo grupo que defendeu a mesma posição no
“debate” sobre o fim dos contratos administrativos. Esta é uma exposição mais
detalhada, sem os constrangimentos do tempo limite de debate.
A dicotomia
entre os contratos privado da Administração e os contratos administrativos
surgiu, por um lado, com a autonomização
da figura do contrato administrativo pela doutrina francesa na 2ª metade do
séc. XIX, e por outro, devido ao não reconhecimento da mesma figura no Direito
alemão, com fundamento no poder soberano e indisponível da Administração
Pública. O Estado actuava nessa altura quase totalmente através do acto
administrativo, sendo aliás essa a principal razão pela qual este era visto como
o centro do Direito Administrativo, como bem nota VASCO PEREIRA DA SILVA na sua
tese de doutoramento, “Em Busca do Acto
Administrativo Perdido”.
A
inexistência do contrato administrativo na Alemanha levava a que a
Administração, ao recorrer a outras formas de actuação (secundárias) e em
particular à contratação, o fizesse nos mesmos termos em que os particulares o
fazem, ou seja, celebrando contratos de direito privado.
À luz desta
dicotomia, a doutrina floresceu no âmbito da matéria do contrato administrativo,
votando o desenvolvimento do regime dos contratos privados ao esquecimento, uma
vez que a estes se aplicava o Direito Privado como de um particular se
tratasse. A liberdade de escolha das formas de actuação permitia que a Administração Pública optasse
pela celebração de contratos de direito privado e fugisse às limitações
usualmente impostas pelo meio de actuação predominante e libertar-se do seu
dever de respeito pelos direitos fundamentais. A este fenómeno a doutrina alemã
começou a chamar de “Flucht ins Privatrecht”, expressão adoptada por MARIA JOÃO
ESTORNINHO e que serviu de título à sua tese de doutoramento, “A Fuga Para O Direito Privado”.
Como nota a
autora, isto colocava dois grandes problemas: o primeiro era o facto de
incentivar funcionários desonrosos a servir-se da desvinculação da
Administração às formalidades e controlo administrativos para desvirtuar a
actividade da Administração em benefício próprio; o segundo era o de colocar os
particulares numa posição de extrema insegurança em virtude da desnecessidade
de respeito pelos seus direitos fundamentais por parte da Administração.
Perante esta
situação desenvolveu-se a ideia de que o Estado exerce sempre poder público,
independentemente do meio jurídico através do qual o faz. Deste modo, mesmo os
contratos de direito privado celebrados pela Administração Pública estariam
sujeitas às formas de controlo do Direito Público.
Uma das
formas pela qual a publicização aproximou os contratos administrativos dos
contratos de direito privado da Administração foi através da funcionalização destes
ao interesse público. Esta característica explica-se pelo facto da causa de
todos os contratos celebrados pela Administração Pública, sejam eles de Direito
Público ou Privado, ser a prossecução do interesse público. Esta é, como refere
ALEXANDRA LEITÃO por inspiração em ANDREA FEDERICO, “a estrela polar de toda a actividade Administrativa, mesmo quando actua
sob formas jurídico-privadas”. A ideia do interesse público enquanto “estrela
polar” de toda a actividade administrativa, independentemente da forma de
actuação usada, abre caminho a que se aplique um regime comum aos contratos da
Administração, pondo fim à dicotomia entre contratos privados da Administração
e contratos administrativos.
Estas dois
aspectos tornaram, assim, mais óbvia a necessidade de um carácter mais ou menos
exigente do procedimento administrativo no âmbito dos contratos celebrados pela
Administração, independentemente da forma jurídica utilizada.
ARMANDO
MARQUES GUEDES explica este ponto de vista de forma elucidativa no seu “Processo Burocrático”. Segundo o saudoso
Sr. Professor (e homem de grande intelecto) a aplicação do procedimento
administrativo à fase pré-contratual dos contratos privados devia ser feita nos
mesmos moldes em que era feita com os actos não-negociais do Estado afirmando
que as razões seriam as mesmas. As razões justificativas do procedimento
administrativo nos actos não-negociais - “estrutura
órgânica da Administração Pública [...] e a natureza funcional da vontade
manifestada pelos órgãos dessas pessoas colectivas [...]” - extendem-se às formas de actuação jurídico-privadas
da Administração. De facto, como evidencia o autor, “o processo burocrático, e os problemas e dificuldades que suscita” são
os mesmos.
O
ordenamento jurídico português foi sensível a estas concepções e o DL 211/79,
com as alterações do DL 277/85, passou a abranger um leque de contratos que
deixaram de ser reconduzidos à dicotomia “contratos administrativos e contratos
privados”. Mais tarde, o DL 24/92 criou um regime especial para determinadas
espécies de contratos celebrados pela Administração, quer privados quer
administrativos.
Estas
alterações significaram, para MARIA JOÃO ESTORNINHO (“A Fuga Para O Direito Privado”), que “o
legislador português, na esteira do legislador comunitário, ultrapassou a
distinção tradicional entre «contratos de
direito privado» e «contratos administrativos» [...]”. Ainda na década de 90, o DL 55/95 veio
revogar esta legislação para introduzir de forma mais clara uma uniformização
do regime jurídico aplicável a uma conjunto de contratos da Administração
independentemente do seu carácter público ou privado.
Como foi
exposto, a publicização dos contratos privados da Administração tem sido
crescente, o que constitui um forte motivo para que no nosso debate tenhamos
questionado o sentido da autonomia do contrato administrativo.
Hoje, o
Código dos Contratos Públicos apresenta um regime que merece ser explorado no
âmbito desta questão, o que pode dar uma resposta conclusiva, e que foi discutida na aula durante o nosso "debate"
Tomás Tudela
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