sexta-feira, 17 de maio de 2013

Publicização dos contratos privados da Administração



Publicização dos contratos privados da Administração

A publicização dos contratos de direito privado celebrados pela Administração é um dos argumentos que MARIA JOÃO ESTORNINHO tem vindo a invocar, desde a sua dissertação de mestrado intitulada “Requiem Pelo Contrato Administrativo”, para a defesa do desaparecimento da distinção conceptual entre os contratos administrativos e os contratos jurídico-privados, pondo fim a essa dicotomia que resultaria numa uniformização substantiva do regime aplicável aos contratos celebrados pela Administração.

Esta é também uma das partes abordadas pelo grupo que defendeu a mesma posição no “debate” sobre o fim dos contratos administrativos. Esta é uma exposição mais detalhada, sem os constrangimentos do tempo limite de debate.

A dicotomia entre os contratos privado da Administração e os contratos administrativos surgiu, por um lado,  com a autonomização da figura do contrato administrativo pela doutrina francesa na 2ª metade do séc. XIX, e por outro, devido ao não reconhecimento da mesma figura no Direito alemão, com fundamento no poder soberano e indisponível da Administração Pública. O Estado actuava nessa altura quase totalmente através do acto administrativo, sendo aliás essa a principal razão pela qual este era visto como o centro do Direito Administrativo, como bem nota VASCO PEREIRA DA SILVA na sua tese de doutoramento, “Em Busca do Acto Administrativo Perdido”.

A inexistência do contrato administrativo na Alemanha levava a que a Administração, ao recorrer a outras formas de actuação (secundárias) e em particular à contratação, o fizesse nos mesmos termos em que os particulares o fazem, ou seja, celebrando contratos de direito privado. 

À luz desta dicotomia, a doutrina floresceu no âmbito da matéria do contrato administrativo, votando o desenvolvimento do regime dos contratos privados ao esquecimento, uma vez que a estes se aplicava o Direito Privado como de um particular se tratasse. A liberdade de escolha das formas de actuação  permitia que a Administração Pública optasse pela celebração de contratos de direito privado e fugisse às limitações usualmente impostas pelo meio de actuação predominante e libertar-se do seu dever de respeito pelos direitos fundamentais. A este fenómeno a doutrina alemã começou a chamar de “Flucht ins Privatrecht”, expressão adoptada por MARIA JOÃO ESTORNINHO e que serviu de título à sua tese de doutoramento, “A Fuga Para O Direito Privado”.
 
Como nota a autora, isto colocava dois grandes problemas: o primeiro era o facto de incentivar funcionários desonrosos a servir-se da desvinculação da Administração às formalidades e controlo administrativos para desvirtuar a actividade da Administração em benefício próprio; o segundo era o de colocar os particulares numa posição de extrema insegurança em virtude da desnecessidade de respeito pelos seus direitos fundamentais por parte da Administração.

Perante esta situação desenvolveu-se a ideia de que o Estado exerce sempre poder público, independentemente do meio jurídico através do qual o faz. Deste modo, mesmo os contratos de direito privado celebrados pela Administração Pública estariam sujeitas às formas de controlo do Direito Público.

Uma das formas pela qual a publicização aproximou os contratos administrativos dos contratos de direito privado da Administração foi através da funcionalização destes ao interesse público. Esta característica explica-se pelo facto da causa de todos os contratos celebrados pela Administração Pública, sejam eles de Direito Público ou Privado, ser a prossecução do interesse público. Esta é, como refere ALEXANDRA LEITÃO por inspiração em ANDREA FEDERICO, “a estrela polar de toda a actividade Administrativa, mesmo quando actua sob formas jurídico-privadas”. A ideia do interesse público enquanto “estrela polar” de toda a actividade administrativa, independentemente da forma de actuação usada, abre caminho a que se aplique um regime comum aos contratos da Administração, pondo fim à dicotomia entre contratos privados da Administração e contratos administrativos. 

Estas dois aspectos tornaram, assim, mais óbvia a necessidade de um carácter mais ou menos exigente do procedimento administrativo no âmbito dos contratos celebrados pela Administração, independentemente da forma jurídica utilizada.

ARMANDO MARQUES GUEDES explica este ponto de vista de forma elucidativa no seu “Processo Burocrático”. Segundo o saudoso Sr. Professor (e homem de grande intelecto) a aplicação do procedimento administrativo à fase pré-contratual dos contratos privados devia ser feita nos mesmos moldes em que era feita com os actos não-negociais do Estado afirmando que as razões seriam as mesmas. As razões justificativas do procedimento administrativo nos actos não-negociais - “estrutura órgânica da Administração Pública [...] e a natureza funcional da vontade manifestada pelos órgãos dessas pessoas colectivas [...]”  - extendem-se às formas de actuação jurídico-privadas da Administração. De facto, como evidencia o autor, “o processo burocrático, e os problemas e dificuldades que suscita” são os mesmos.

O ordenamento jurídico português foi sensível a estas concepções e o DL 211/79, com as alterações do DL 277/85, passou a abranger um leque de contratos que deixaram de ser reconduzidos à dicotomia “contratos administrativos e contratos privados”. Mais tarde, o DL 24/92 criou um regime especial para determinadas espécies de contratos celebrados pela Administração, quer privados quer administrativos.

Estas alterações significaram, para MARIA JOÃO ESTORNINHO (“A Fuga Para O Direito Privado”),  que “o legislador português, na esteira do legislador comunitário, ultrapassou a distinção  tradicional entre «contratos de direito privado» e «contratos administrativos» [...]”.  Ainda na década de 90, o DL 55/95 veio revogar esta legislação para introduzir de forma mais clara uma uniformização do regime jurídico aplicável a uma conjunto de contratos da Administração independentemente do seu carácter público ou privado.

Como foi exposto, a publicização dos contratos privados da Administração tem sido crescente, o que constitui um forte motivo para que no nosso debate tenhamos questionado o sentido da autonomia do contrato administrativo. 

Hoje, o Código dos Contratos Públicos apresenta um regime que merece ser explorado no âmbito desta questão, o que pode dar uma resposta conclusiva, e que foi discutida na aula durante o nosso "debate"


Tomás Tudela

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