domingo, 5 de maio de 2013

O Regime Legal da Responsabilidade Civil Administrativa do Estado


  • A Responsabilidade por Facto Ilícito 
A criação do regime da LRCEE quase que se concretizou em diversas situações, e foi procedida de um projecto de lei e de três propostas de lei. A primeira observação que esta lei justifica, está relacionada com o seu âmbito material: este novo regime legal vai aplicar-se à responsabilidade civil extracontratual decorrente de actos das funções administrativa, legislativa e judicial (art.1º, nº1).
A LRCEE salvaguarda os regimes especiais de responsabilidade civil por danos decorrentes da função administrativa (ex: regime jurídico da responsabilidade por danos ambientais).
No que toca agora ao seu âmbito subjectivo, o legislador alarga o âmbito de aplicação subjectiva do novo regime legal às pessoas colectivas de direito privado que actuem com prerrogativas de poder público ou sob a égide de princípios e regras de direito administrativo (art.1º, nº2), aproximando-se de uma concepção material da administração pública como actividade e não como organização.
A LRCEE também se aplica à responsabilidade dos titulares do órgão, funcionários (PAULO VEIGA E MOURA considera que é todo aquele que preste o seu trabalho sob a autoridade, a direcção e no desempenho de funções próprias e permanentes dos serviços públicos cujo quadro de pessoal aceitou integrar) e agentes públicos, trabalhadores, titulares dos órgãos sociais e representantes legais ou auxiliares (art.1º, nº5).
A responsabilidade que emerge de danos causados no exercício da função administrativa surgiu inicialmente como responsabilidade subjectiva, por envolver um juízo de censura sobre o comportamento do que causou o prejuízo que, podendo (e devendo) ter optado por outra conduta, escolheu a que era potencialmente danosa. Esta responsabilização assenta em duas ideias: ilicitude e culpa.
Quanto à ilicitude, esta consiste numa acção ou omissão que viola princípios e regras constitucionais, legais ou regulamentares; de regras técnicas; de deveres objectivos de cuidado (art.9º, nº1); ou resultante do funcionamento anormal do serviço (art.7º, nº3). Cabe referir a dificuldade em preencher este requisito devido ao problema da distinção entre ilicitude e ilegalidade. Este problema desencadeia a questão da irrelevância ressarcitória de vícios de forma, de procedimento ou de competências das actuações administrativas, por não serem afectadas substancialmente posições jurídicas subjectivas dos particulares.
No que diz respeito à culpa, esta decorre de um comportamento adoptado com diligência ou aptidão inferiores àquelas que fosse razoável exigir, no caso, a um titular de órgão administrativo, funcionário ou agente zeloso e cumpridor, com base nos princípios e regras jurídicas relevantes (art. 10º, nº1). Este requisito pode ter duas modalidades:
  1. culpa grave, quando o autor da conduta ilícita actuou com dolo ou diligência e zelo manifestamente inferiores àquele a que se encontrava obrigado em razão do cargo (art.8º, nº1);
  2. culpa leve, quando o autor da conduta ilícita actuou com diligência e zelo inferiores, mas não manifestamente inferiores, àqueles a que se encontrava obrigado.

A lei, a fim de facilitar a responsabilização, estabelece uma presunção, com base na qual a autoria de um acto jurídico ilícito ou o incumprimento de deveres de vigilância faz presumir a culpa leve (art.10º, nº2 e 3).
O possível contributo do lesado para a produção do dano ou para o agravamento do mesmo (concorrência da culpa do lesado) pode implicar a exclusão do direito à indemnização. Entende-se por culpa do lesado, quando este não tenha utilizado os meios processuais ao seu alcance para eliminar o acto jurídico que gerou o dano (art.4º).
Assim, a responsabilidade do Estado ou outra entidade pública é exclusiva:
  1. quando o autor da conduta ilícita tenha actuado no exercício da função administrativa e por causa desse exercício, com culpa leve (art.7º, nº1);
  2. quando os danos causados sejam imputáveis ao funcionário anormal do serviço, mas não tenham resultado de um comportamento concretamente determinado ou não seja possível apurar a sua autoria (art.7º, nº3).

Quando o autor da conduta ilícita tenha actuado com dolo ou culpa grave, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, o Estado ou outra entidade pública são solidariamente responsáveis com o titular do órgão, funcionário ou agente (art.8º, nº2). Assim, o Estado ao pagar a indemnização fixada pela tribunal, tem direito de regresso relativo às quantias que deveriam ser pagas pelo titular do órgão, funcionário ou agente. É de sublinhar que o direito de regresso corresponde a um poder vinculado que a administração tem obrigatoriamente de exercer (art.8º, nº3 e 6º, nº1). Assim, sempre que o Estado ou uma pessoa colectiva de direito público seja condenado em responsabilidade civil fundada no comportamento ilícito adoptado por um titular de órgão, funcionário ou agente, sem que tenha sido apurado o grau de culpa do titular do órgão envolvido, a respectiva acção judicial prossegue entre a pessoa colectiva e o referido titular do órgão, para apuramento do grau de culpa deste e, em função disso, do eventual exercício do direito de regresso por parte daquela (art.8º, nº4).
Nos trabalhos preparatórios da reforma, FAUSTO DE QUADROS manifestou a necessidade de por termo à inconstitucionalidade por omissão do DL nº 48051 de 1967, resultante da violação do art. 22º CRP. O autor defendeu a conversão do direito de regresso no dever de regresso, sempre que o agente tenha agido com culpa grave ou dolo. Assim, salvaguardar-se-ia a defesa dos contribuintes nos casos de negligência grave ou dolo dos funcionários ou agentes administrativos. Só em caso de ausência de culpa leve da parte destes, não haveria dever de regresso da administração.

  •  A Responsabilidade pelo Risco
As sucessivas revoluções industriais foram acompanhadas por uma multiplicação de novos tipos de danos, ligados a novas e mais sofisticadas técnicas de produção, pois a sociedade industrial é marcada por um quotidiano de perigos.
Assim, o principio de que «não há responsabilidade sem culpa» acabou por se revelar inadequado face a essas circunstâncias (o desenvolvimento técnico comporta uma maior probabilidade de aumentar o número de acidentes, bem como a respectiva intensidade danosa, isto é, a perigosidade). Se pensarmos, por exemplo, nos acidentes laborais, a impossibilidade prática de se responsabilizar a entidade empregadora leva ao aparecimento de soluções que passam pela responsabilidade objectiva, uma vez que esta opera pelo facto de se ter efectivado um dano, independentemente de culpa.
Uma previsão da responsabilidade pelo risco é uma consequência irrenunciável da natureza intervencionista do Estado Social actual. Este e as demais entidades públicas continuam a produzir e prestar serviços que podem gerar situações eventuais de risco para os particulares.
No direito público, a responsabilidade pelo risco aplicável ao Estado e demais entidades públicas não tem de ser tipificada. A CRP não distingue, no âmbito geral da responsabilidade das entidades públicas, entre a responsabilidade por actos ilícitos, lícitos e pelo risco: é a lei ordinária que o faz.
O regime da responsabilidade pelo risco é semelhante ao da responsabilidade por acto ilícito, denominado pela nova lei da indemnização do sacrifício, apesar de ser diferente o respectivo fundamento e diversos os tipos de danos a considerar.
O regime é o da responsabilidade directa, exclusiva e objectiva das entidades públicas.
Comparando o regime da responsabilidade civil administrativa pelo risco, com o regime da indemnização pelo sacrifício, que compreende também a função administrativa, constata-se que os pressupostos daquela responsabilidade e os da responsabilidade por acto licito gerador de indemnização por sacrifício são semelhantes. A única diferença diz respeito à natureza do dano. Os danos da responsabilidade pelo risco decorrem de actividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos (art.11º, nº1), ao passo que os danos geradores da indemnização pelo sacrifício hão-de ser, especiais e anormais (art.16º). E isto porquê? Porque a responsabilidade por acto lícito tem por pressuposto um dano causado de modo diferenciado e para além dos inconvenientes normais da vida em comum na esfera jurídica do particular. É que o acto é licito, pelo que serão restritivas as condições para que possa desencadear obrigação de indemnizar. Ora, o dano causador da responsabilidade pelo risco não tem de se sujeitar a tão apertadas condições para que possa obrigar a indemnizar: não tem de ser especial e anormal, bastando que seja consequência da especial perigosidade de actividades, coisas ou serviços administrativos – o Prof. MARCELO REBELO DE SOUSA alude à especificidade do dano na responsabilidade pelo risco, na medida em que, ao contrario da responsabilidade por facto licito, não existe qualquer limite qualitativo à ressarcibilidade dos danos.
Também há que notar que o fundamento da obrigação de indemnizar pelo sacrifício e o da responsabilidade pelo risco é diferente: no primeiro o fundamento é o da tutela da confiança e da igualdade na repartição dos encargos públicos, no segundo é o da compensação pelos danos decorrentes do exercício de certas actividades perigosas - Da mesma forma, o Prof. MARCELO REBELO DE SOUSA aponta diversos fundamentos para os dois tipos de responsabilidade, embora considerando que a compensação do dano decorrente de actividades perigosas desdobra-se nas teorias da criação do risco e do risco-proveito: a primeira, porque a responsabilidade pelo risco é excluída ou reduzida se houver culpa do lesado ou de terceiro; a segunda, porque a responsabilidade pelo risco é apenas das pessoas colectivas administrativas e não dos seus titulares de órgãos ou agentes, uma vez que o risco é criado em beneficio exclusivo do interesse público prosseguido pelas primeiras e não dos interesses particulares dos segundos. E também se deve chamar a atenção para o facto de o dano causador da responsabilidade pelo risco ser uma consequência indirecta e involuntária de certa actividade, ao passo que o dano pressuposto da indemnização pelo sacrifício é o resultado de um acto voluntário e intencional.
A responsabilidade do Estado pelo risco só deixa de ser exclusiva dele, para passar a ser solidária com a de terceiro, se este contribuiu culposamente para a produção ou agravamento do dano, mantendo o Estado e aquelas entidades direito de regresso, se indemnizou o lesado (art.11º, nº2).
A culpa continua a ser apresentada como a trave mestra do sistema de responsabilidade civil. FRANCESCO BUSNELLI destaca a função personalizadora da culpa como critério de imputação, ou seja, a possibilidade de, através dela, atender de forma mais adequada à condição psicológica do agente e ao circunstancialismo que envolve a respectiva conduta. Realça ainda que, através da culpa, é possível acomodar melhor a necessária ponderação entre o prejuízo do lesado e a valoração da conduta do lesante.
Os autores têm vindo a destacar uma evolução baseada na inexibilidade de qualquer nexo de causalidade entre o individuo não culpado e o dano provocado: bastaria o benefício da actividade que originou a produção do dano.
O campo da responsabilidade pelo risco na responsabilidade que incumbe ao Estado é bastante vasto e pode compreender uma multiplicidade de situações danosas que nem sempre se situa no campo das intervenções ilícitas. Daí que seja necessário recuperar as soluções trazidas pelos acórdãos do Conselho de Estado francês, nomeadamente o Ac. Lafont, o qual reflectiu a preocupação de imputar a responsabilidade ao Estado pelo risco de actividades perigosas, tendo em conta a natureza do serviço na imputação da culpa ao funcionário que praticou o dano.


E um esquema sobre a responsabilidade: http://www.pgdlisboa.pt/textos/files/tex_0040.pdf

Mariana Serra, nº22024

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