quinta-feira, 9 de maio de 2013

Competência Revogatória: tese do autor legal vs tese do autor efectivo – Round 2



Competência Revogatória: tese do autor legal vs tese do autor efectivo – Round 2

Quando decidi abordar a querela doutrinária sobre o problema que o art. 142º/1 do Código do Procedimento Administrativo (CPA) levanta acerca do titular da competência revogatória dos actos praticados por órgãos incompetentes, tive o cuidado de verificar se não estaria a  repetir a publicação de ninguém. Ao de ler a opinião da Patrícia Silva sobre este assunto, reparei que nas suas conclusões sustentava uma posição com a qual não concordo, pelo que pensei que seria interessante partilhar uma visão diferente deste problema.

O art. 142º/1 do CPA estabelece a competência para a revogação de actos administrativos e dispõe que esta pertence, em primeiro lugar, ao seu autor. O problema coloca-se, como a Patrícia Silva referiu, quando o acto a revogar tenha sido praticado por um órgão incompetente.
Os defensores da tese do autor legal apresentam normalmente apenas um argumento a seu favor, procedendo depois à refutação da solução oposta, o que por processo de eliminação deixaria apenas a sua posição “de pé”.

Esse argumento a favor é o da identificação da competência dispositiva com a competência revogatória, isto é, se um órgão tem competência dispositiva, tem necessariamente competência revogatória. Isto implica aceitar que o fundamento da competência revogatória é a competência dispositiva, uma construção que o nosso ordenamento jurídico afasta ao rejeitar expressamente  competência revogatória a órgãos que tenham competência dispositiva: uma leitura ao art. 142º/2 permite inferir, a contrario sensu, que o órgão delegado não pode, ao abrigo da delegação, revogar actos praticados pelo órgão delegante, ainda que tenha competência dispositiva graças à delegação – este é um contra-argumento muito bem esgrimido por MARCELO REBELO DE SOUSA. Resumidamente, em resposta a SÉRVULO CORREIA, MARCELLO CAETANO, PAULO OTERO, E MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, segundo os quais um órgão com poderes para produzir efeitos na esfera jurídica e outrem (competência dispositiva) tem obrigatoriamente poderes para pôr termo a esses efeitos (competência revogatória), não é logicamente necessário que isso suceda uma vez que outros órgãos podem ter competência revogatória. Isto esvazia quase na totalidade a fundamentação da defesa do autor legal, pelo que deixa de fazer sentido defender esta posição, pelo menos por esta razão.

A falha que os defensores da tese do autor legal encontram na posição dos seus adversários também não procede, e por razões que MARCELO REBELO DE SOUSA (muito bem) explica. A pretensa falha seria a de que, como  indica a Patrícia no seu comentário ao problema,  a tese do autor efectivo implica que a lei premeia o órgão incompetente e incentiva uma dupla incompetência. Isto não faz muito sentido, uma vez que se a lei atribui competência ao autor efectivo, este deixa de ser incompetente, pelo menos para proceder ao acto de revogação. Logo, a segunda incompetência não existe. Quanto ao facto de se olhar para esta situação como um prémio ao órgão que errou, eu sou da opinião que isso se deve apenas a um erro de prespectiva: não se trata de congratular um órgão por ter praticado um acto sem competência para tal, trata-se sim de dar a esse órgão as ferramentas necessárias para rectificar o seu erro e para se redimir.

Posto isto, o elemento literal da lei parece levar a melhor e oferecer fundamentação suficiente para defender que a competência revogatória pertence ao autor do acto, i.e., ao autor efectivo do acto – aliás, atrevo-me a dizer que não faz sentido utilizar expressão “autor legal” nos termos em que os defensores da tese do autor legal o fazem, uma vez que se o acto ainda não foi praticado, não há autor, há apenas um órgão com competência legal. Logo, o elemento literal da lei nunca suportaria, em bom rigor, a solução proposta pela Patrícia.

 O Professor Marcelo Rebelo de Sousa vai mais longe e alude ao elemento sistemático como argumento a favor da tese do autor efectivo:  caso a lei tivesse consagrado a teoria do autor legal, o art. 137º/3 CPA seria totalmente supérfluo em face do teor do art. 137º/2 CPA”. Na linha de pensamento do Professor,  a consagração da teoria do autor legal significaria que, uma vez que o art.137º/2 aplica à ratificação as regras do art. 142º/1, e o art. 137º/3 atribui competência para ratificar ao “autor legal” nos casos de incompetência, teríamos duas normas com uma relação de especialidade entre elas que diriam exactamente a mesma coisa, o que de facto não faz sentido.

Apesar do exposto, parece-me que estamos perante um falso dilema e que na verdade há uma terceira via. Os argumentos dos defensores da tese do autor efectivo procedem e, a meu ver, o argumento clássico a favor da tese do autor legal não tem fundamento. No entanto, penso que é possível, ainda assim, construir uma defesa desta última tese e assim sustentar que tanto o autor legal como o autor efectivo devem ter competência revogatória.

Como base de fundamentação da tese do defensor legal podemos, em face das crítica apresentada por MARCELO REBELO DE SOUSA, recorrer ao elemento teleológico da norma em causa e ao espírito do nosso ordenamento jurídico. A competência revogatória tem fundamento no poder de autocontrolo da administração pública, que por sua vez se funda no princípio da legalidade e no princípio da prossecução do interesse público (MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, DIREITO ADMINISTRATIVO GERAL TOMO III, 2ª ED., pág. 199).  Estes são dois princípios basilares do Direito Administrativo, cuja finalidade é a protecção e promoção do bem-estar dos particulares. Pode então estender-se a finalidade  destes princípios à ratio do art. 142º/1 do CPA, o que permite defender uma interpretação extensiva da norma a fim de incluir o “autor legal” na expressão “autor” contida no texto da norma. Este é, a meu ver, o caminho que mais protege os particulares.

Ainda a favor desta posição se pode construir mais um argumento, de forma totalmente oposta à forma como MARCELO REBELO DE SOUSA constrói o seu argumento sistemático: o art. 137º/3 oferece razões para se defender a tese do autor legal, na verdade. Afinal, é também um contra-senso atribuir, por um lado, poderes de ratificação do acto praticado por órgão incompetente e por outro, negar-lhe competência revogatória. Equivale a obrigar um órgão a ratificar para depois poder revogar. É um processo desnecessário e incoerente.

 Em relação às consequências que a defesa da tese do autor legal tem, quero dizer que me parece que os Professores Diogo Freitas do Amaral e Marcelo Rebelo de Sousa se preocupam com a preservação da coerência constitucional das relações de supra-infraordenação, tendo em conta o facto de que esta solução admite um poder de superintendência que na verdade não existe, ao custo da coerência do próprio Direito Administrativo no seu todo, especialmente tendo em conta a sua finalidade. Não olhar à finalidade de um instrumento na sua construção resulta num instrumento inútil. Passar por cima da proteção dos particulares apenas para manter a coerência das relações órgânicas e institucionais equivale a  preocupar-nos com os detalhes dum objecto cuja finalidade vamos perverter pelo caminho – um pouco como querer desenhar uma porta tão gira, tão gira, que depois optamos por desenhá-la com um buraco "artístico" no meio. Para quê ter uma porta com um buraco no meio?

O afastamento de uma tese ou de outra conduz a isto mesmo, à abertura dum buraco na construção do Direito Administrativo que frustra a sua própria finalidade, a de proteger os particulares. Esta é, uma certa forma, e sem referência à metáfora da porta (talvez inapropriada, dada a informalidade), a posição do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, que numa posição intermédia defende a atribuição da competência revogatória tanto ao autor legal como ao autor efectivo a fim de melhor proteger os particulares.

Tomás  Tudela

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