Questão: Terá a Administração
Pública competência para desaplicar normas que considere inconstitucionais?
A resposta à questão colocada
não tem de modo algum uma solução pacífica, existe um grande conflito
doutrinário. Como tal, iremos expor os argumentos a favor duma competência por
parte da Administração Pública para a desaplicação de normas consideradas por
ela inconstitucionais, e os argumentos contra essa competência.
O princípio da legalidade
Como sabemos a Administração
Pública visa prosseguir o interesse público, mas deve fazê-lo em
observância a um certo número de
princípios e de regras, ou seja, deve prosseguir o interesse público em obediência
à lei. É neste contexto que nos surge o princípio da legalidade. O princípio da
legalidade, antes mesmo que a constituição atual o mencionasse explicitamente
(artigo 266º/2 da CRP), já era considerado um princípio geral de Direito
Administrativo. Tradicionalmente, Marcelo Caetano, definia o princípio da
legalidade através de uma delimitação negativa, isto é, consistia basicamente
numa proibição: proibição da administração pública lesar os direitos ou
interesses dos particulares, salvo com base na lei. Diferentemente, a doutrina
mais recente, nomeadamente o professor Freitas do Amaral define o princípio da
legalidade do seguinte modo: “ Os orgãos e os agentes da administração pública
só podem agir com fundamento na lei e dentro dos limites por ela impostos.” Atualmente,
podemos evidenciar três principais diferenças entre a conceção tradicional e a
conceção mais recente, a saber: em primeiro lugar, o princípio da legalidade
aparece-nos agora definido de forma positiva; em segundo lugar, este princípio
passa a abranger o interesse público, e não apenas os interesses dos
particulares; por último, hoje, a lei não é apenas um limite, mas também
fundamento à atuação administrativa. Segundo este princípio, a Administração
Pública só pode agir se e na medida em que a norma jurídica lho permitir, como
tal, mesmo que considere uma norma inconstitucional, deve agir de acordo com
esta e, por isso, não tem competência para a desaplicar.
O princípio da
constitucionalidade
O Princípio da
Constitucionalidade traduz-se na imposição do primado da Constituição e o seu
valor superior no ordenamento jurídico. Aliada a este princípio, surge-nos uma
presunção de não inconstitucionalidade das normas legais, que significa
dizer-se que tem de existir um juízo de confiança permanente sobre todo e
qualquer diploma e que, à partida, o legislador é competente e nenhuma norma
será contrária à Constituição. No nosso ordenamento jurídico, vigora uma
presunção de constitucionalidade e essa presunção deriva, desde logo, da
aprovação e promulgação da lei. Portanto, de acordo com este princípio, toda a
norma deverá ser acatada pela Administração não tendo esta uma competência para
não aplicá-las.
Este princípio, como já foi
dito implica o primado da Constituição, portanto, o primado de princípios nela
contidos, como por exemplo, o princípio da separação de poderes:
Á luz do artigo 2º da CRP,
Portugal é um Estado baseado na separação de poderes, segundo o artigo 111º
número 1 da CRP, os órgãos de soberania
devem observar a separação estabelecidas na Constituição. Se analisarmos o
artigo 204º da CRP verificamos que estamos perante uma admissão expressa apenas
de uma competência judicial de desaplicação de normas legais inconstitucionais,
ou seja, a fiscalização da constitucionalidade foi atribuída expressamente pela
CRP aos tribunais, importa saber se está ou não esta faculdade constitucional
reservada ao poder judicial. O artigo 202º número 1 da CRP incube os tribunais
de reprimir a violação da legalidade democrática, isto é, consagra uma reserva
da função jurisdicional quanto à competência de desaplicação de normas legais
consideradas inconstitucionais, como tal, a Administração não tem essa mesma
competência pois nesse caso estaríamos perante um vício de usurpação de poder.
Até agora analisámos este
princípio do “prisma contra a competência”, contudo, este também pode ser
utilizado no “prisma a favor”, isto é, pode apontar igualmente para o
reconhecimento de uma competência administrativa de fiscalização das leis e,
portanto de uma competência genérica de apreciação da constitucionalidade. Esta
posição é adotada, por exemplo, pelo Professor Rui Medeiros, que salienta se “a
fiscalização da constitucionalidade está estritamente associada à interpretação
da Constituição, não é por qualquer incapacidade de interpretar a Constituição
que as autoridades administrativas deixarão de ser chamadas a exercer um
controlo da constitucionalidade das leis”. Existe inclusivamente, como o mesmo
autor refere, a negação da tese da eficácia obrigatória da lei inconstitucional
até declaração do Tribunal Constitucional, que afasta a conceção de que a
Constituição apenas produz os seus efeitos em relação à atividade legislativa e
ao controlo da constitucionalidade das leis efetuada pelo Tribunal
Constitucional e pelos restantes tribunais. É deste modo que, atualmente,
começa a dissipar-se a conceção do “administrador-computador” ou de uma
Administração que aplica as suas leis de forma mecânica; ao invés o papel de
poder da Administração Pública tem vindo a intensificar-se. Neste contexto,
surge o princípio da economia elementar indicando que se somente os tribunais
estivessem aptos a analisar casos de inconstitucionalidade, multiplicar-se-iam
os esforços dos tribunais e promover-se-iam, de certa forma, mais
inconstitucionalidades (já para não mencionar nos processos jurisdicionais que
se prolongariam pelos tribunais). Para além do já referido, acresce ainda o
facto de que a recusa de aplicação de uma lei inconstitucional pelos órgãos
superiores da Administração Pública não é sancionada. Esta é a opinião do
Professor Rui Medeiros, “a violação pelos órgãos da Administração Pública do
dever de aplicação da lei inconstitucional não é tão grave para o bom
funcionamento dos serviços públicos e para a uniformização da atividade
administrativa que justifique a aplicação de uma sanção”. Em suma, perante os
argumentos expostos não se depreende que somente os tribunais sejam capazes de
julgar e de desaplicar normas que considerem inconstitucionais. Isto porque,
como já foi mencionado, a vinculação da Administração à Constituição admite um
poder administrativo de rejeição de leis inconstitucionais.
Princípio da hierarquia das
fontes
A ideia de que a Administração
está imediatamente subordinada à lei e não pode recusar a sua aplicação com
fundamento em inconstitucionalidade pode ser apresentada como um corolário do
princípio geral da hierarquia das fontes do direito. O princípio geral da
hierarquia das fontes de direito exige que cada ato jurídico-público se
conforme com a norma, ainda que inválida, que na respetiva hierarquia o
antecede e, portanto, impõe aqui que a vinculação à lei signifique vinculação à
norma que se encontra mais próxima do caso a decidir.
Embora este princípio seja
normalmente utilizado como argumento contra a competência para a desaplicação,
optámos pelo caminho mais difícil: refutá-lo. Antes de mais podemos dizer que
existe falta de coerência. Se o autor de cada ato jurídico apenas estivesse
autorizado a averiguar da conformidade com o ato que hierarquicamente e
imediatamente o antecede, então não faria sentido a existência de um sistema de
fiscalização jurisdicional da constitucionalidade. Em segundo lugar, a invocação deste argumento
não se afigura adequada ao tema em apreço. O problema da hierarquia dos atos
jurídicos é de ordem sistémico-estrutural. Da hierarquia das fontes decorrem
apenas as relações de primazia de determinados atos sobre outros. A hierarquia
das fontes nada diz quanto à competência para conhecer das consequências da
desconformidade decorrente da violação de um ato jurídico de grau superior por
outro de grau inferior. O conhecimento das consequências de desconformidades
normativas é de ordem competencial. Já sabemos que a Constituição prevalece
sobre a lei ordinária. Aqui, aquilo que se pretende saber é se a Administração,
como consequência da verificação da inconstitucionalidade de uma lei, pode
rejeitá-la. Deste modo, este argumento não poderá ser utilizado devidamente no
âmbito desta matéria. Em terceiro lugar, mesmo que a hierarquia de fontes fosse
relevante para a averiguação da existência de uma competência administrativa de
desaplicação de normas legais inconstitucionais, estaríamos sempre perante a
admissibilidade desta desaplicação, uma vez que a hierarquia postula imediatamente
a preferência do ato jurídico de escalão superior sobre o de escalão inferior.
Podemos inclusivamente afirmar que este argumento é paradoxal, na medida em
que, por um lado exige a conformidade de um ato com aquele que imediatamente o
precede e, por outro lado, configura a supremacia de um ato, a Constituição,
sobre outros atos. Por último, a utilização deste argumento contra a
competência administrativa de desaplicação, apesar da nítida inspiração
normativista, não é fiel às suas raízes teóricas e metodológicas. Como se sabe
os juristas da Escola de Viena eram defensores de uma competência administrativa
de desaplicação. Este argumento pressupõe que o aplicador-criador de Direito
não veja além do grau imediatamente superior da pirâmide normativa. No entanto,
a conceção kelseniana admitia o acesso de cada criador-aplicador de Direito a
todos os escalões normativos superiores e adotava uma ótica bidirecional, que a
levava a enfatizar tanto a necessária subordinação dos atos jurídicos de
escalão inferior ao imediatamente superior, como a função, exercida pelos atos
jurídicos de escalão superior, de determinação do conteúdo dos atos jurídicos
de escalão inferior.
Para a questão colocada, encontramos vários autores com posições diversas:
1) ANDRÉ SALGADO DE MATOS defende que é através de uma poderação que se estabelece no caso concreto a prevalência de um princípio sobre o outro que com ele colide.
A segurança jurídica apresenta-se como o valor jurídico-constitucional mais relevante e fundamental na solução de tal colisão entre os princípios da constitucionalidade e da separação dos poderes/legalidade.
O professor afirma mesmo que “a desaplicação de normas legais incontitucionais não pode pôr toleravelmente em perigo a segurança jurídica”.
O autor ainda refere um outro argumento que se traduz no facto de no nosso ordenamento jurídico vigorar o princípio da legalidade de competência (art. 29 CPA):
a) Tem que estar normativamente definido o poder cujo exercício se permite
b) Tem que estar normativamente definido o órgão habilitado a exercê-lo
Assim, quem estiver constitucionalmente habilitado a aplicar uma norma legal estaria também habilitado para a sua desaplicação no caso de uma norma inconstitucional.
Todavia, não se pode nunca esquecer do princípio norteador de toda a actuação jurídica – Segurança Jurídica! Como critério da solução entre o princípio da constitucionalidade e o da separação de poderes está a manutenção dos níveis de insegurança jurídica, pelo que só se admitirá a competeência de desaplicação nas situações em que a insegurança jurídica não se constitui como uma ameaça.
2) JORGE MIRANDA defende que o próprio preceito constitucional, nomeadamente o art. 18/1 CRP, confere uma autorização aos órgãos administrativos superiores para não aplicarem leis que entendam ser contrárias ao texto fundamental.
3) GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA defendem que no conflito entre os dois princípios o que prevalece tendencialmente é o princípio da legalidade, no sentido em que a Administração não tem a competência de poder controlar a constitucionalidade das leis. Admitem, todavia, que se se tratar de leis inconstitucionais relativas a direitos, liberdades e garantias, então, nesse caso a Administração poderia desaplicar tal lei, desde que a inconstitucionalidade manifestada fosse evidente e manifesta. Se a inconstitucionalidade for muito evidente e grave resulta daí a não aplicação da norma não prevalecendo o princípio da vinculação constitucional directa da Administração, mas antes o da não obediência à lei.
4) PAULO OTERO entende que a regra é a de que a Administração não pode afastar a aplicação da lei, por força do princípio da legalidade e também do critério da hierarquia, no sentido em que a Administração não se encontra genericamente habilitada para desaplicar uma lei quando esta é inválida. Assim, o autor acaba por concluir que em sede de competência de desaplicação administrativa de leis, tal competência assume um carácter excepcional.
Assim, o autor aponta quatro situações em que admite a competência de desaplicação de leis por parte de órgãos administrativos:
a) Quando as normas são inconstitucionais e se constituem como “leis injustas”. Por exemplo, leis que violem o núcleo de direitos fundamentais. Nestes casos, a Administração pode e DEVE desaplicar tais leis, mesmo sabendo que a sua actuação seguiu um caminho inverso ao consagrado na lei.
b) As normas legislativas que estejam numa situação de antinomia/conflito em face de actos comunitários que vinculam a Administração. Nestes casos, a Administração deve desaplicar as normas legislativas fazendo funcionar o critério da hierarquia das fontes; revelendo ao mesmo tempo o primado do Direito comunitário sobre a lei interna; e finalmente fazendo do direito comunitário um legitimador da desaplicação da lei pela Administração.
c) As normas legislativas que estejam numa situação de antinomia/conflito com uma convenção internacional superveniente. Também aqui a Administração não deve aplicar as leis internas em favor da convenção por duas ordens de razão: de novo o critério da hierarquia das fontes e o princípio cronológico, no sentido em que se a convenção é posterior à lei, então, a Administração deve desaplicar a lei anterior e contrária.
d) A Administração das Regiões Autónomas deverá desaplicar os Decretos Legislativos Regionais sempre que estes contrariem os regulamentos do Governo da República.
Para a questão colocada, encontramos vários autores com posições diversas:
1) ANDRÉ SALGADO DE MATOS defende que é através de uma poderação que se estabelece no caso concreto a prevalência de um princípio sobre o outro que com ele colide.
A segurança jurídica apresenta-se como o valor jurídico-constitucional mais relevante e fundamental na solução de tal colisão entre os princípios da constitucionalidade e da separação dos poderes/legalidade.
O professor afirma mesmo que “a desaplicação de normas legais incontitucionais não pode pôr toleravelmente em perigo a segurança jurídica”.
O autor ainda refere um outro argumento que se traduz no facto de no nosso ordenamento jurídico vigorar o princípio da legalidade de competência (art. 29 CPA):
a) Tem que estar normativamente definido o poder cujo exercício se permite
b) Tem que estar normativamente definido o órgão habilitado a exercê-lo
Assim, quem estiver constitucionalmente habilitado a aplicar uma norma legal estaria também habilitado para a sua desaplicação no caso de uma norma inconstitucional.
Todavia, não se pode nunca esquecer do princípio norteador de toda a actuação jurídica – Segurança Jurídica! Como critério da solução entre o princípio da constitucionalidade e o da separação de poderes está a manutenção dos níveis de insegurança jurídica, pelo que só se admitirá a competeência de desaplicação nas situações em que a insegurança jurídica não se constitui como uma ameaça.
2) JORGE MIRANDA defende que o próprio preceito constitucional, nomeadamente o art. 18/1 CRP, confere uma autorização aos órgãos administrativos superiores para não aplicarem leis que entendam ser contrárias ao texto fundamental.
3) GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA defendem que no conflito entre os dois princípios o que prevalece tendencialmente é o princípio da legalidade, no sentido em que a Administração não tem a competência de poder controlar a constitucionalidade das leis. Admitem, todavia, que se se tratar de leis inconstitucionais relativas a direitos, liberdades e garantias, então, nesse caso a Administração poderia desaplicar tal lei, desde que a inconstitucionalidade manifestada fosse evidente e manifesta. Se a inconstitucionalidade for muito evidente e grave resulta daí a não aplicação da norma não prevalecendo o princípio da vinculação constitucional directa da Administração, mas antes o da não obediência à lei.
4) PAULO OTERO entende que a regra é a de que a Administração não pode afastar a aplicação da lei, por força do princípio da legalidade e também do critério da hierarquia, no sentido em que a Administração não se encontra genericamente habilitada para desaplicar uma lei quando esta é inválida. Assim, o autor acaba por concluir que em sede de competência de desaplicação administrativa de leis, tal competência assume um carácter excepcional.
Assim, o autor aponta quatro situações em que admite a competência de desaplicação de leis por parte de órgãos administrativos:
a) Quando as normas são inconstitucionais e se constituem como “leis injustas”. Por exemplo, leis que violem o núcleo de direitos fundamentais. Nestes casos, a Administração pode e DEVE desaplicar tais leis, mesmo sabendo que a sua actuação seguiu um caminho inverso ao consagrado na lei.
b) As normas legislativas que estejam numa situação de antinomia/conflito em face de actos comunitários que vinculam a Administração. Nestes casos, a Administração deve desaplicar as normas legislativas fazendo funcionar o critério da hierarquia das fontes; revelendo ao mesmo tempo o primado do Direito comunitário sobre a lei interna; e finalmente fazendo do direito comunitário um legitimador da desaplicação da lei pela Administração.
c) As normas legislativas que estejam numa situação de antinomia/conflito com uma convenção internacional superveniente. Também aqui a Administração não deve aplicar as leis internas em favor da convenção por duas ordens de razão: de novo o critério da hierarquia das fontes e o princípio cronológico, no sentido em que se a convenção é posterior à lei, então, a Administração deve desaplicar a lei anterior e contrária.
d) A Administração das Regiões Autónomas deverá desaplicar os Decretos Legislativos Regionais sempre que estes contrariem os regulamentos do Governo da República.
Conclusão:
Embora sejam vários os argumentos que podemos discutir neste trabalho optámos por aprofundar os que considerámos mais relevantes para a temática e, após a longa pesquisa efetuada
em torno desta questão complexa, analisados os prós e os contras, é unânime
entre todos os membros do debate a defesa da competência para a desaplicação de
normas consideradas inconstitucionais pela Administração Pública, porém pedimos ao leitor que procure obter as suas
próprias conclusões, podendo contar com a ajuda deste trabalho.
Bibliografia:
MARQUES, Pedro Marchão,
«O princípio da legalidade na Administração Pública», Relatório de mestrado em
Direito Constitucional, Lisboa, 1993;
MATOS, André Salgado
de, «A fiscalização administrativa da constitucionalidade: contributo para o
estudo das relações entre Constituição, lei e administração pública no Estado
Social de Direito», Lisboa, Tese de mestrado em Ciências Jurídico-Políticas
apresentada à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Direito, 2001;
MEDEIROS, Rui, «A
Decisão de Inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da
decisão de inconstitucionalidade da lei», Lisboa, Universidade Católica
Editora, 3ª edição, 1999;
Ana Rapoula
Catarina Pires
Filipa Lagoa
Graça Ribeiro
Inês de Onofre
Sofia Paixão
Sofia Pires
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