quinta-feira, 2 de maio de 2013


A ilegalidade externa do acto e a responsabilidade civil da administração


A questão que pretendo esclarecer neste post é a seguinte: poderá a prática de um acto administrativo ferido de ilegalidade externa gerar para a Administração o dever de indemnizar o particular prejudicado por esse acto?

Antes de mais, são várias as questões a ter em conta, como o que se entende por ilegalidade externa, quais os interesses que as normas externas visam proteger, se a questão poderá ser apreciada de forma unitária relativamente a todas as normas externas ou terá necessariamente que ser tratada mediante o estabelecimento de distinções entre os vários tipos.

Este problema tem vindo a ser debatido na doutrina portuguesa ao longo do tempo. As primeiras referências que dizem respeito ao problema das relações entre a ilegalidade externa do acto administrativo e a responsabilidade civil da Administração surgem com MARCELLO CAETANO, a propósito do pressuposto da ilicitude. Fazendo uma leitura literal do art.º6º do DL nº 48 051 de 21 de Novembro de 1967 (que regulou durante quarenta anos o regime da responsabilidade civil da Administração por actos de gestão pública), o qual parecia fazer depender a ilicitude dos actos jurídicos apenas da violação das normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis, o Autor afirmou que “ a ilicitude coincide com a ilegalidade do acto e apura-se nos termos gerais em que se analisam os respectivos vícios”. Fazia, portanto, coincidir, a ilicitude com a ilegalidade.

Por outro lado, GOMES CANOTILHO procurou olhar para ambos os preceitos de forma integrada e rejeitou a doutrina que reconduz a ilicitude à anti juridicidade. Segundo o autor, tem de haver existir uma específica referência da ordem jurídica objectiva aos direitos subjectivos e posições jurídicas protegidas do particular. Este autor recusa a concepção objectivista, afirmando que “a violação das normas emanadas no interesse público é insuficiente para emanar um pedido de indemnização, se, pelo menos, o fim dessa norma não for também o da defesa do lesado”. Defende ainda que que nem toda a violação de norma jurídica constitui um facto ilícito, exigindo-se, para responsabilizar o Estado, a ofensa de direitos de terceiros ou de disposições legais destinadas a proteger os seus interesses.

Já o prof. RUI MEDEIROS, não acompanha a posição do autor referido anteriormente no que diz respeito à exclusão do vicio de forma ou de competência ratione personae dos casos que podem gerar para o Estado o dever de indemnizar. Sublinha o facto de, as “ilegalidades veniais” que conduzem à anulação do acto também podem implicar a violação de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares. Para sustentar a sua posição, recorda a opinião de FREITAS DO AMARAL, que faz notar o facto de todas as normas jurídicas, incluindo as normas orgânicas e funcionais interessarem aos particulares, havendo, por isso, um facto ilícito sempre que a violação de uma norma orgânica ou formal tenha como consequência a lesão de um direito ou de uma disposição legal destinada a proteger os interesses do particular. Rui Medeiros faz, pelo menos tendencialmente, coincidir a ilicitude, não com a ilegalidade, mas com a invalidade do acto administrativo, independentemente do carácter, formal ou material, do vício que o fere e invalida.

O prof. MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS adoptam uma posição restritiva face a questão de saber se a ilegalidade externa do acto administrativo pode fazer a Administração incorrer no dever de indemnizar o particular afectado.  Defendem que a ilicitude é sinónimo de anti juridicidade, tendo como ilícita qualquer conduta que viole o bloco de ilegalidade. Assim, para haver responsabilidade delitual não basta a verificação de qualquer ilegalidade, devendo esta consistir na violação da norma que tutela a posição jurídica subjectiva cuja lesão se pretende ver reparada.

A conduta subsequente da Administração é determinante para boa parte da doutrina, na qual se inclui MARGARIDA CORTEZ, MARCELO REBELO DE SOUSA  e SALGADO DE MATOS. É tida como elemento determinante para demonstrar qual teria sido o conteúdo do acto inicial anulado caso tivesse sido praticado sem a ou as ilegalidades não substanciais que determinaram a anulação. Se o acto for renovado ficará demonstrado que o seu conteúdo teria sido o mesmo logo de início, mesmo com integral respeito pelas normas violadas: se o sentido decisório do acto for alterado, então reconhecer-se-á que caso a ilegalidade formal, procedimental ou orgânica não se tivesse verificado o conteúdo do acto inicial teria sido diferente.

Também LUIS CABRAL DE MONCADA se pronuncia sobre este tema, rejeitando a negação da ilicitude quando o acto administrativo está ferido por vícios de incompetência, absoluta ou relativa e incluindo a sua forma mais agravada, ou seja, a usurpação de poderes e o vício de forma, incluindo o vício de procedimento. Apoia-se em JHERING, que refere que no Direito a forma é irmã gémea da liberdade e inimiga do arbítrio. Cabral de Moncada remete para uma análise casuística a questão de saber se se verificam, nesses casos, os restantes pressupostos da obrigação de indemnizar, como a culpa e o nexo de causalidade. Avança com um critério de resolução do problema, segundo o qual a violação de regras formais importa com certeza indemnização sempre que determinada forma se explique pela protecção de uma situação juridicamente protegida.

Cabe agora fazer uma análise do problema numa perspectiva de Direito comparado:
Em FRANÇA o regime da responsabilidade civil dos poderes públicos e da Administração em particular, não obstante estar baseado em conceitos próprios do Direito Civil como a “faute” (que consiste numa mistura do ilícito com a culpa), é hoje sobretudo fruto do labor jurisprudencial. Decidiu-se neste país que, a responsabilidade que possa incumbir ao Estado pelos danos causados aos particulares por facto das pessoas que ele emprega no serviço publico, não pode ser regida pelos princípios estabelecidos no Código Civil para as relações entre os particulares.

Já em ESPANHA, o actual regime da responsabilidade civil da Administração pública está regulado na Ley 30/1992- Ley de Régimen Juridico de las Administraciones Públicas y del Procedimiento Administrativo Común (LRJPA) arts. 139 e sgs. Trata-se de um regime de responsabilidade objectiva, cujo princípio básico é o de que os particulares terão direito a ser indemnizados pelas Administrações Públicas por toda a lesão que sofram em qualquer dos seus bens e direitos sempre que a lesão seja consequência do funcionamento normal ou anormal dos serviços públicos.

Analise-se, agora, que em ITÁLIA, a responsabilidade civil da Administração Pública é regulada, tal como a dos particulares, pela lei civil, em concreto nos arts. 2043º e sgs do C.C italiano.

Cumpre referir que, desde o séc XIX até ao presente ocorreu uma evolução de um paradigma de irresponsabilidade do Estado administrador, em que vigorava o princípio da inexistência de responsabilidade por actos de gestão publica, máxime por actos jurídicos de autoridade -“ the king can do no wrong”- até um ambiente de responsabilização plena da Administração Pública, em que o principio passou a ser o da responsabilização, pelos actos, inclusivamente em actos de soberania ou de gestão. Actualmente, penso que será até possível colocar a questão de saber se a responsabilidade do Estado não será mesmo agravada face à dos particulares- de forma que a evolução desde -“ the king can do no wrong” teria chegado até qualquer coisa como “with great power comes great responsability”. Do ponto de vista restrito da responsabilidade por facto ilícito é inegável a “objectivação” da responsabilidade, quer mediante a consagração jurisprudencial, e agora legal, de uma presunção de culpa leve, quer mediante a previsão da responsabilidade pelo funcionamento anormal dos serviços públicos, também chamada culpa anónima ou “culpa do serviço”.

 Importa agora fazer uma distinção entre formalidades essenciais, também chamadas substanciais, cuja violação gera a invalidade do acto e possibilita a sua anulação (quando não originem nulidade) e formalidades não essenciais, também chamadas acessórias, cuja violação origina mera irregularidade não invalidante. As formalidades serão não essenciais quando não tiverem qualquer aptidão para conformar o conteúdo decisório do acto administrativo, mas sirvam única e exclusivamente a organização ou arrumação da actividade decisória da Administração.

O prof. FREITAS DO AMARAL distingue três possíveis situações de formalidades não essenciais: as formalidades que a lei declarar indispensáveis, aquelas cuja preterição não tenha impedido a concessão das finalidades visadas pela lei ao exigi-las, caso em que ocorrerá uma degradação de formalidades essenciais e não essenciais e as formalidades meramente burocráticas, de caracter interno. Porém, apenas estas últimas são verdadeiras formalidades não essenciais, pois relativamente às primeiras, se é a própria lei que dispensa o cumprimento então esta será facultativa ou não obrigatória e quanto às segundas, as chamadas “degradações de formalidades em não essenciais” constituem casos de verdadeiras formalidades essenciais. Esta distinção é decisiva para resolver a questão de saber se a violação de determinada norma externa gera ou não dever de indemnizar da Administração.

Para além dos casos das chamadas formalidades não essenciais ou meras irregularidades, cuja violação não chega a gerar a invalidade do acto administrativo, a chamada “teoria dos meios inoperantes” e o principio do aproveitamento do acto administrativo apenas podem conduzir à não anulação de actos feridos de ilegalidade procedimental e formal em dois casos: quando o interesse tutelado pela norma violada venha mostrar-se satisfeito, ainda que por “por portas travessas” ou quando o acto praticado fosse de tal maneira vinculado, quanto ao conteúdo e quanto à oportunidade, ou quando, o que para o efeito dá no mesmo, pelas circunstâncias concretas do caso a margem de livre decisão administrativa estivesse reduzida de tal forma, que não pudesse senão ter o conteúdo com que efectivamente foi praticado, e devesse ter sido praticado na ocasião em que o foi.

A questão de saber se o particular afectado por um acto administrativo ferido de ilegalidade externa- orgânica, procedimental, formal- tem direito a obter da Administração uma indemnização pelos danos que sofreu em consequência do acto, justifica-se sobretudo pela inaptidão geral das normas externas para conformarem directamente o conteúdo decisório dos actos administrativos e para assegurarem ao particular a satisfação do seu interesse material de fundo.

É de notar uma tendencial evolução desde um enquadramento da questão em sede de ilicitude, no âmbito do qual a possibilidade de atribuição de indemnização  é geralmente negada liminarmente, até às mais modernas perspectivações do problema a partir da aceitação de uma “ilicitude formal” e da remissão do seu tratamento para os pressupostos do dano, nexo causal e conexão de ilicitude, no âmbito da qual prevalecem a existência de uma relação causal entre a ilegalidade isoladamente considerada e o dano, bem como a negação de que os danos sofridos pelo particular possam incluir-se nos fins de protecção das normas externas.

As normas externas distinguem-se das normas internas por as primeiras, ao contrário das segundas, não serem aptas a conformar directamente o conteúdo decisório do acto administrativo. As normas externas valem sobretudo como normas instrumentais face aos interesses jurídicos materiais- a “forma serve a matéria”- e adquirem especial força, também para defesa e garantia dos interesses materiais particulares, no âmbito da actividade administrativa não vinculada, pelo que o enfoque da análise recai sobre os casos em que a administração actua com uma margem de livre decisão.

A Constituição exige a responsabilização do Estado pela violação de quaisquer posições jurídicas subjectivas, sejam substanciais ou instrumentais. Resulta algo paradoxal a constatação de que, quanto mais larga é a margem de livre decisão administrativa e portanto mais alto é o valor protector das normas instrumentais, e assim mais premente a exigência constitucional de responsabilização pela sua violação, mais difícil se torna ao particular efectivar a tutela secundária que lhe é concedida. O problema afecta sobretudo as situações de indeferimento de pedidos ampliatórios dos particulares, colocando-se a questão de saber quais são as formas de o resolver: admitindo pura e simplesmente que as dificuldades acrescidas devem recair sobre quem sofreu o dano ou, pelo contrário, procurando formas de garantir a tutela ressarcitória das posições instrumentais quando elas se revestem de maior valor, nomeadamente recorrendo à aplicação da norma de inversão do ónus probatório ou garantindo indemnizações pelo dano de perda de chance.

A sujeição da Administração aos princípios da legalidade e da competência, implicam, não uma maior imunidade face ao que sucede com os particulares, mas quanto muito uma maior responsabilização. A responsabilidade civil administrativa assume uma função de pendor preventivo ou objectivista (que não punitivo) com particular relevância, ainda que a reparação se mantenha como função primordial.

Uma aplicação da teoria alemã da norma de protecção adaptada ao alargamento da abrangência do nosso ordenamento a todas as posições jurídicas subjectivas (direitos e interesses legalmente protegidos), implica a consideração de que as normas orgânicas, a generalidade das normas procedimentais (como as relativas à informação e participação procedimental) e as normas formais (como a que prescreve o dever de fundamentação do acto administrativo) atribuem aos particulares posições jurídicas subjectivas instrumentais. Salvo demonstração do contrário, a generalidade das normas externas visa garantir os particulares face ao poder administrativo e influenciar, não só a bem do interesse publico mas também a favor dos interesses particulares, o conteúdo decisório doa actos administrativos, incluindo a norma que prescreve o dever de fundamentação, que não se destina exclusivamente a permitir ao particular o conhecimento dos fundamentos, mas também a que haja uma ponderação efectiva, incluindo sobre os motivos apresentados pelo interessado em sede de participação procedimental, máxime em audiência prévia.

Nas situações pretensivas, a ilicitude advinda da violação das normas externas configuráveis como normas externas de protecção é exclusivamente instrumental. Nas situações opositivas poderá ocorrer uma ilicitude dupla: instrumental, caso as normas externas violadas sejam normas de protecção, e também material, por nesses casos o acto configurar uma agressão ilegítima, por legalmente não fundada, e por isso não permitida, à posição jurídica subjectiva material opositiva que já existia na esfera jurídica do particular. A execução do acto cuja ilegalidade o tornou incapaz de produzir os seus efeitos jurídicos constitui uma lesão directa dessa posição jurídica material, por se tratar de uma intervenção não titulada. A ilicitude instrumental, como a material, inquina todo o acto administrativo, incluindo o seu conteúdo decisório, tal como ocorre com a invalidade. Por isso, já não se dirá apenas que a preterição de audiência do particular afectou o seu direito a ser ouvido, mas sim que o acto administrativo praticado violou o direito do particular a ser ouvido.

Por fim, acrescente-se ainda que, o dano, como pressuposto autónomo da obrigação de indemnizar, deve ser concebido como uma realidade objectiva ou naturalística, cuja ressarcibilidade só se conhecerá depois de analisados os restantes pressupostos da responsabilidade civil. 



Raquel Frazão Vaz
Nº 22097

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