A ilegalidade externa do acto e a responsabilidade civil da administração
A questão que
pretendo esclarecer neste post é a seguinte: poderá a prática de um acto
administrativo ferido de ilegalidade externa gerar para a Administração o dever
de indemnizar o particular prejudicado por esse acto?
Antes de mais,
são várias as questões a ter em conta, como o que se entende por ilegalidade
externa, quais os interesses que as normas externas visam proteger, se a
questão poderá ser apreciada de forma unitária relativamente a todas as normas
externas ou terá necessariamente que ser tratada mediante o estabelecimento de
distinções entre os vários tipos.
Este problema
tem vindo a ser debatido na doutrina portuguesa ao longo do tempo. As primeiras
referências que dizem respeito ao problema das relações entre a ilegalidade
externa do acto administrativo e a responsabilidade civil da Administração
surgem com MARCELLO CAETANO, a propósito do pressuposto da ilicitude. Fazendo
uma leitura literal do art.º6º do DL nº 48 051 de 21 de Novembro de 1967 (que
regulou durante quarenta anos o regime da responsabilidade civil da
Administração por actos de gestão pública), o qual parecia fazer depender a
ilicitude dos actos jurídicos apenas da violação das normas legais e regulamentares
ou os princípios gerais aplicáveis, o Autor afirmou que “ a ilicitude coincide
com a ilegalidade do acto e apura-se nos termos gerais em que se analisam os
respectivos vícios”. Fazia, portanto, coincidir, a ilicitude com a ilegalidade.
Por outro
lado, GOMES CANOTILHO procurou olhar para ambos os preceitos de forma integrada
e rejeitou a doutrina que reconduz a ilicitude à anti juridicidade. Segundo o
autor, tem de haver existir uma específica referência da ordem jurídica
objectiva aos direitos subjectivos e posições jurídicas protegidas do
particular. Este autor recusa a concepção objectivista, afirmando que “a
violação das normas emanadas no interesse público é insuficiente para emanar um
pedido de indemnização, se, pelo menos, o fim dessa norma não for também o da
defesa do lesado”. Defende ainda que que nem toda a violação de norma jurídica
constitui um facto ilícito, exigindo-se, para responsabilizar o Estado, a
ofensa de direitos de terceiros ou de disposições legais destinadas a proteger
os seus interesses.
Já o prof. RUI MEDEIROS, não acompanha a posição do autor referido anteriormente no que diz respeito à
exclusão do vicio de forma ou de competência ratione personae dos casos que podem gerar para o Estado o dever de
indemnizar. Sublinha o facto de, as “ilegalidades veniais” que conduzem à
anulação do acto também podem implicar a violação de direitos ou interesses
legalmente protegidos dos particulares. Para sustentar a sua posição, recorda a
opinião de FREITAS DO AMARAL, que faz notar o facto de todas as normas
jurídicas, incluindo as normas orgânicas e funcionais interessarem aos
particulares, havendo, por isso, um facto ilícito sempre que a violação de uma
norma orgânica ou formal tenha como consequência a lesão de um direito ou de
uma disposição legal destinada a proteger os interesses do particular. Rui
Medeiros faz, pelo menos tendencialmente, coincidir a ilicitude, não com a
ilegalidade, mas com a invalidade do acto administrativo, independentemente do
carácter, formal ou material, do vício que o fere e invalida.
O prof.
MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS adoptam uma posição restritiva
face a questão de saber se a ilegalidade externa do acto administrativo pode
fazer a Administração incorrer no dever de indemnizar o particular
afectado. Defendem que a ilicitude é
sinónimo de anti juridicidade, tendo como ilícita qualquer conduta que viole o
bloco de ilegalidade. Assim, para haver responsabilidade delitual não basta a
verificação de qualquer ilegalidade, devendo esta consistir na violação da
norma que tutela a posição jurídica subjectiva cuja lesão se pretende ver
reparada.
A conduta
subsequente da Administração é determinante para boa parte da doutrina, na qual
se inclui MARGARIDA CORTEZ, MARCELO REBELO DE SOUSA e SALGADO DE MATOS. É tida como elemento
determinante para demonstrar qual teria sido o conteúdo do acto inicial anulado
caso tivesse sido praticado sem a ou as ilegalidades não substanciais que
determinaram a anulação. Se o acto for renovado ficará demonstrado que o seu
conteúdo teria sido o mesmo logo de início, mesmo com integral respeito pelas
normas violadas: se o sentido decisório do acto for alterado, então
reconhecer-se-á que caso a ilegalidade formal, procedimental ou orgânica não se
tivesse verificado o conteúdo do acto inicial teria sido diferente.
Também LUIS
CABRAL DE MONCADA se pronuncia sobre este tema, rejeitando a negação da
ilicitude quando o acto administrativo está ferido por vícios de incompetência,
absoluta ou relativa e incluindo a sua forma mais agravada, ou seja, a
usurpação de poderes e o vício de forma, incluindo o vício de procedimento.
Apoia-se em JHERING, que refere que no Direito a forma é irmã gémea da
liberdade e inimiga do arbítrio. Cabral de Moncada remete para uma análise
casuística a questão de saber se se verificam, nesses casos, os restantes
pressupostos da obrigação de indemnizar, como a culpa e o nexo de causalidade.
Avança com um critério de resolução do problema, segundo o qual a violação de
regras formais importa com certeza indemnização sempre que determinada forma se
explique pela protecção de uma situação juridicamente protegida.
Cabe agora
fazer uma análise do problema numa perspectiva de Direito comparado:
Em FRANÇA o
regime da responsabilidade civil dos poderes públicos e da Administração em particular,
não obstante estar baseado em conceitos próprios do Direito Civil como a “faute” (que consiste numa mistura do
ilícito com a culpa), é hoje sobretudo fruto do labor jurisprudencial.
Decidiu-se neste país que, a responsabilidade que possa incumbir ao Estado
pelos danos causados aos particulares por facto das pessoas que ele emprega no
serviço publico, não pode ser regida pelos princípios estabelecidos no Código
Civil para as relações entre os particulares.
Já em ESPANHA,
o actual regime da responsabilidade civil da Administração pública está
regulado na Ley 30/1992- Ley de Régimen
Juridico de las Administraciones Públicas y del Procedimiento Administrativo
Común (LRJPA) arts. 139 e sgs. Trata-se de um regime de responsabilidade
objectiva, cujo princípio básico é o de que os particulares terão direito a ser
indemnizados pelas Administrações Públicas por toda a lesão que sofram em
qualquer dos seus bens e direitos sempre que a lesão seja consequência do
funcionamento normal ou anormal dos serviços públicos.
Analise-se,
agora, que em ITÁLIA, a responsabilidade civil da Administração Pública é
regulada, tal como a dos particulares, pela lei civil, em concreto nos arts.
2043º e sgs do C.C italiano.
Cumpre referir
que, desde o séc XIX até ao presente ocorreu uma evolução de um paradigma de
irresponsabilidade do Estado administrador, em que vigorava o princípio da
inexistência de responsabilidade por actos de gestão publica, máxime por actos
jurídicos de autoridade -“ the king can
do no wrong”- até um ambiente de responsabilização plena da Administração
Pública, em que o principio passou a ser o da responsabilização, pelos actos,
inclusivamente em actos de soberania ou de gestão. Actualmente, penso que será
até possível colocar a questão de saber se a responsabilidade do Estado não
será mesmo agravada face à dos particulares- de forma que a evolução desde -“ the king can do no wrong” teria
chegado até qualquer coisa como “with
great power comes great responsability”. Do ponto de vista restrito da responsabilidade
por facto ilícito é inegável a “objectivação” da responsabilidade, quer
mediante a consagração jurisprudencial, e agora legal, de uma presunção de
culpa leve, quer mediante a previsão da responsabilidade pelo funcionamento
anormal dos serviços públicos, também chamada culpa anónima ou “culpa do
serviço”.
Importa agora fazer uma distinção entre
formalidades essenciais, também chamadas substanciais, cuja violação gera a
invalidade do acto e possibilita a sua anulação (quando não originem nulidade)
e formalidades não essenciais, também chamadas acessórias, cuja violação
origina mera irregularidade não invalidante. As formalidades serão não
essenciais quando não tiverem qualquer aptidão para conformar o conteúdo
decisório do acto administrativo, mas sirvam única e exclusivamente a
organização ou arrumação da actividade decisória da Administração.
O prof.
FREITAS DO AMARAL distingue três possíveis situações de formalidades não
essenciais: as formalidades que a lei declarar indispensáveis, aquelas cuja
preterição não tenha impedido a concessão das finalidades visadas pela lei ao
exigi-las, caso em que ocorrerá uma degradação de formalidades essenciais e não
essenciais e as formalidades meramente burocráticas, de caracter interno.
Porém, apenas estas últimas são verdadeiras formalidades não essenciais, pois
relativamente às primeiras, se é a própria lei que dispensa o cumprimento então
esta será facultativa ou não obrigatória e quanto às segundas, as chamadas
“degradações de formalidades em não essenciais” constituem casos de verdadeiras
formalidades essenciais. Esta distinção é decisiva para resolver a questão de
saber se a violação de determinada norma externa gera ou não dever de
indemnizar da Administração.
Para além dos
casos das chamadas formalidades não essenciais ou meras irregularidades, cuja
violação não chega a gerar a invalidade do acto administrativo, a chamada “teoria
dos meios inoperantes” e o principio do aproveitamento do acto administrativo
apenas podem conduzir à não anulação de actos feridos de ilegalidade
procedimental e formal em dois casos: quando o interesse tutelado pela norma
violada venha mostrar-se satisfeito, ainda que por “por portas travessas” ou
quando o acto praticado fosse de tal maneira vinculado, quanto ao conteúdo e
quanto à oportunidade, ou quando, o que para o efeito dá no mesmo, pelas circunstâncias
concretas do caso a margem de livre decisão administrativa estivesse reduzida
de tal forma, que não pudesse senão ter o conteúdo com que efectivamente foi
praticado, e devesse ter sido praticado na ocasião em que o foi.
A questão de
saber se o particular afectado por um acto administrativo ferido de ilegalidade
externa- orgânica, procedimental, formal- tem direito a obter da Administração
uma indemnização pelos danos que sofreu em consequência do acto, justifica-se
sobretudo pela inaptidão geral das normas externas para conformarem
directamente o conteúdo decisório dos actos administrativos e para assegurarem
ao particular a satisfação do seu interesse material de fundo.
É de notar uma
tendencial evolução desde um enquadramento da questão em sede de ilicitude, no
âmbito do qual a possibilidade de atribuição de indemnização é geralmente negada liminarmente, até às mais
modernas perspectivações do problema a partir da aceitação de uma “ilicitude
formal” e da remissão do seu tratamento para os pressupostos do dano, nexo
causal e conexão de ilicitude, no âmbito da qual prevalecem a existência de uma
relação causal entre a ilegalidade isoladamente considerada e o dano, bem como
a negação de que os danos sofridos pelo particular possam incluir-se nos fins
de protecção das normas externas.
As normas
externas distinguem-se das normas internas por as primeiras, ao contrário das
segundas, não serem aptas a conformar directamente o conteúdo decisório do acto
administrativo. As normas externas valem sobretudo como normas instrumentais
face aos interesses jurídicos materiais- a “forma serve a matéria”- e adquirem
especial força, também para defesa e garantia dos interesses materiais
particulares, no âmbito da actividade administrativa não vinculada, pelo que o
enfoque da análise recai sobre os casos em que a administração actua com uma
margem de livre decisão.
A Constituição
exige a responsabilização do Estado pela violação de quaisquer posições jurídicas
subjectivas, sejam substanciais ou instrumentais. Resulta algo paradoxal a
constatação de que, quanto mais larga é a margem de livre decisão
administrativa e portanto mais alto é o valor protector das normas
instrumentais, e assim mais premente a exigência constitucional de
responsabilização pela sua violação, mais difícil se torna ao particular
efectivar a tutela secundária que lhe é concedida. O problema afecta sobretudo
as situações de indeferimento de pedidos ampliatórios dos particulares,
colocando-se a questão de saber quais são as formas de o resolver: admitindo
pura e simplesmente que as dificuldades acrescidas devem recair sobre quem
sofreu o dano ou, pelo contrário, procurando formas de garantir a tutela
ressarcitória das posições instrumentais quando elas se revestem de maior
valor, nomeadamente recorrendo à aplicação da norma de inversão do ónus
probatório ou garantindo indemnizações pelo dano de perda de chance.
A sujeição da
Administração aos princípios da legalidade e da competência, implicam, não uma
maior imunidade face ao que sucede com os particulares, mas quanto muito uma
maior responsabilização. A responsabilidade civil administrativa assume uma
função de pendor preventivo ou objectivista (que não punitivo) com particular
relevância, ainda que a reparação se mantenha como função primordial.
Uma aplicação
da teoria alemã da norma de protecção adaptada ao alargamento da abrangência do
nosso ordenamento a todas as posições jurídicas subjectivas (direitos e
interesses legalmente protegidos), implica a consideração de que as normas
orgânicas, a generalidade das normas procedimentais (como as relativas à
informação e participação procedimental) e as normas formais (como a que
prescreve o dever de fundamentação do acto administrativo) atribuem aos
particulares posições jurídicas subjectivas instrumentais. Salvo demonstração
do contrário, a generalidade das normas externas visa garantir os particulares
face ao poder administrativo e influenciar, não só a bem do interesse publico
mas também a favor dos interesses particulares, o conteúdo decisório doa actos
administrativos, incluindo a norma que prescreve o dever de fundamentação, que
não se destina exclusivamente a permitir ao particular o conhecimento dos
fundamentos, mas também a que haja uma ponderação efectiva, incluindo sobre os
motivos apresentados pelo interessado em sede de participação procedimental,
máxime em audiência prévia.
Nas situações
pretensivas, a ilicitude advinda da violação das normas externas configuráveis
como normas externas de protecção é exclusivamente instrumental. Nas situações
opositivas poderá ocorrer uma ilicitude dupla: instrumental, caso as normas
externas violadas sejam normas de protecção, e também material, por nesses
casos o acto configurar uma agressão ilegítima, por legalmente não fundada, e
por isso não permitida, à posição jurídica subjectiva material opositiva que já
existia na esfera jurídica do particular. A execução do acto cuja ilegalidade o
tornou incapaz de produzir os seus efeitos jurídicos constitui uma lesão
directa dessa posição jurídica material, por se tratar de uma intervenção não
titulada. A ilicitude instrumental, como a material, inquina todo o acto
administrativo, incluindo o seu conteúdo decisório, tal como ocorre com a
invalidade. Por isso, já não se dirá apenas que a preterição de audiência do
particular afectou o seu direito a ser ouvido, mas sim que o acto
administrativo praticado violou o direito do particular a ser ouvido.
Por fim,
acrescente-se ainda que, o dano, como pressuposto autónomo da obrigação de
indemnizar, deve ser concebido como uma realidade objectiva ou naturalística,
cuja ressarcibilidade só se conhecerá depois de analisados os restantes
pressupostos da responsabilidade civil.
Raquel Frazão Vaz
Nº 22097
Raquel Frazão Vaz
Nº 22097
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