quarta-feira, 8 de maio de 2013

Procedimento Regulamentar e Audiência dos Interessados


           Ao longo deste semestre analisámos já por diversas vezes a audiência dos interessados na perspectiva do acto administrativo. Fazendo sumariamente um ponto de situação, sabemos que é o momento do procedimento administrativo em que se verifica uma efectiva participação dos interessados, o momento em que estes são ouvidos no procedimento antes da tomada de decisão final (cf. Artigo 100º, nº 1 do CPA). 

            Podemos ainda dizer que esta audiência dos interessados é ainda uma concretização de princípios consagrados pelo CPA, mais concretamente o princípio da colaboração da Administração com os particulares (Art. 7º) e o princípio da participação (Art. 8º) e que encontra base constitucional no artigo 267º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa ao ser um garante da “participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito”.

            O que se pretende neste artigo é aferir se a audiência dos interessados é um instituto apenas presente no procedimento administrativo ou se também existe no procedimento regulamentar. Sabe-se que regulamento e acto administrativo são realidades completamente diferentes. Como explica o Professor Freitas do Amaral, “o regulamento, como norma jurídica que é, é uma regra geral e abstracta, ao passo que o acto administrativo como acto jurídico que é, é uma decisão individual e concreta”. Fica a questão de saber, portanto, se também os interessados devem ser ouvidos no procedimento regulamentar, embora não haja neste caso uma decisão individual e concreta mas sim um comando geral e abstracto.

            O CPA não se alonga muito no que ao regulamento diz respeito, e quanto à participação dos interessados, reserva-lhe 2 artigos, o 117º e o 118º. O artigo 117º trata acerca da audiência dos interessados enquanto o 118º concerne a apreciação pública. Quanto à audiência dos interessados, o CPA no art. 117º, nº1, determina o seguinte: “Tratando-se de regulamento que imponha deveres, sujeições ou encargos, e quando a isso não se oponham razões de interesse público, as quais serão sempre fundamentadas, o órgão com competência regulamentar deve ouvir, em regra, sobre o respectivo projecto, nos termos definidos em legislação própria, as entidades representativas dos interesses afectados, caso existam.” E a questão que se coloca é a de saber qual a legislação para que remete este artigo. O Professor Marcelo Rebelo de Sousa refere que esta “legislação própria” nunca foi aprovada e, como tal, “a audiência dos interessados no procedimento regulamentar é, actualmente, uma formalidade de realização meramente discricionária, não gerando a sua omissão qualquer ilegalidade do regulamento que venha a ser aprovado”.

            O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo 2/7/2002 (Proc. 0519/02) estabelece que no caso de ser preterida a audiência dos interessados, o regulamento que vier posteriormente a ser aprovado “(…) não sofre de vício invalidante, podendo ainda afirmar-se que a inaplicação dos citados preceitos não ofende a garantia constitucional da tutela judicial efectiva dos artºs 20º nº 1 e 268º n º4.” Proponho as seguintes reflexões: Fará sentido afastar a audiência dos interessados com base no facto de a norma legal do art. 117º/1 do CPA não ser auto-exequível? E quanto ao artigo 267º, nº5 da CRP? Será a apreciação pública suficiente para salvaguardar o respeito pela Constituição?

            A audiência prévia é uma formalidade mas é também considerada um direito fundamental de participação no procedimento administrativo. No entanto, parece que quanto ao procedimento regulamentar, a jurisprudência vai no sentido de desvalorizar essa formalidade, com base na falta de “legislação própria”. Após uma leitura deste Acórdão do STA, deve-se salientar que os argumentos utilizados não são de todo sustentáveis. Por um lado, equipara-se o regulamento ao acto administrativo (“a intervenção dos particulares em procedimentos de formação de acto regulamentar é uma vertente do direito de participação procedimental que tem a maior importância quer por se situar no momento verdadeiramente genético das decisões administrativas, quer por o regulamento ter eficácia por vezes idêntica à do acto administrativo”), por outro lado, desvaloriza-se o papel da audiência dos interessados no procedimento regulamentar (“a audiência prévia e a discussão pública não são garantias de legalidade, nem fornecem necessariamente elementos úteis, ou ao menos indispensáveis, ao controle jurisdicional”).

            Na minha opinião, não me parece que estejamos perante um sistema eficaz no que ao procedimento regulamentar diz respeito. Não me parece que a falta da legislação própria seja uma causa justificativa da falta de audiências prévias. O regulamento não deve ser desvalorizado face ao acto administrativo e neste caso existe claramente um desvirtuar do princípio da participação dos interessados. Aponho as minhas reservas quanto a este sistema e penso que é da maior urgência aprovar a legislação que estabeleça os termos em que deve ser conduzida a audiência prévia e em que os interessados devem ser ouvidos. 

           Por fim, diria ainda que não concordo quando se refere que a exigência legal da apreciação pública de todos os projectos de regulamentos garante a participação dos interessados no procedimento regulamentar, e permite salvar o CPA de uma inconstitucionalidade por omissão. A audiência dos interessados e a apreciação pública são formas completamente diferentes de participação sendo que a primeira é muito mais directa e representa uma consagração muito mais fiel do princípio de participação dos interessados e do princípio de colaboração da Administração com os particulares. Podemos, talvez, não estar perante uma inconstitucionalidade por omissão mas estamos, sem dúvida, perante um desvirtuamento destes princípios no procedimento regulamentar.


                               Francisco Felner da Costa

Sem comentários:

Enviar um comentário