Ao longo
deste semestre analisámos já por diversas vezes a audiência dos interessados na
perspectiva do acto administrativo. Fazendo sumariamente um ponto de situação,
sabemos que é o momento do procedimento administrativo em que se verifica uma
efectiva participação dos interessados, o momento em que estes são ouvidos no
procedimento antes da tomada de decisão final (cf. Artigo 100º, nº 1 do CPA).
Podemos
ainda dizer que esta audiência dos interessados é ainda uma concretização de
princípios consagrados pelo CPA, mais concretamente o princípio da colaboração
da Administração com os particulares (Art. 7º) e o princípio da participação (Art.
8º) e que encontra base constitucional no artigo 267º, nº 5, da Constituição da
República Portuguesa ao ser um garante da “participação dos cidadãos na
formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito”.
O que se pretende neste artigo é
aferir se a audiência dos interessados é um instituto apenas presente no
procedimento administrativo ou se também existe no procedimento regulamentar. Sabe-se
que regulamento e acto administrativo são realidades completamente diferentes.
Como explica o Professor Freitas do Amaral, “o regulamento, como norma jurídica
que é, é uma regra geral e abstracta, ao passo que o acto administrativo como
acto jurídico que é, é uma decisão individual e concreta”. Fica a questão de saber,
portanto, se também os interessados devem ser ouvidos no procedimento
regulamentar, embora não haja neste caso uma decisão individual e concreta mas
sim um comando geral e abstracto.
O CPA não se alonga muito no que ao
regulamento diz respeito, e quanto à participação dos interessados, reserva-lhe
2 artigos, o 117º e o 118º. O artigo 117º trata acerca da audiência dos
interessados enquanto o 118º concerne a apreciação pública. Quanto à audiência
dos interessados, o CPA no art. 117º, nº1, determina o seguinte: “Tratando-se
de regulamento que imponha deveres, sujeições ou encargos, e quando a isso não
se oponham razões de interesse público, as quais serão sempre fundamentadas, o
órgão com competência regulamentar deve ouvir, em regra, sobre o respectivo
projecto, nos termos definidos em
legislação própria, as entidades representativas dos interesses afectados,
caso existam.” E a questão que se coloca é a de saber qual a legislação para
que remete este artigo. O Professor Marcelo Rebelo de Sousa refere que esta “legislação
própria” nunca foi aprovada e, como tal, “a audiência dos interessados no
procedimento regulamentar é, actualmente, uma formalidade de realização
meramente discricionária, não gerando a sua omissão qualquer ilegalidade do
regulamento que venha a ser aprovado”.
O Acórdão do Supremo Tribunal
Administrativo 2/7/2002 (Proc. 0519/02) estabelece que no caso de ser preterida
a audiência dos interessados, o regulamento que vier posteriormente a ser
aprovado “(…) não sofre de vício invalidante, podendo ainda afirmar-se que a inaplicação
dos citados preceitos não ofende a garantia constitucional da tutela judicial
efectiva dos artºs 20º nº 1 e 268º n º4.” Proponho as seguintes reflexões: Fará
sentido afastar a audiência dos interessados com base no facto de a norma legal
do art. 117º/1 do CPA não ser auto-exequível? E quanto ao artigo 267º, nº5 da
CRP? Será a apreciação pública suficiente para salvaguardar o respeito pela
Constituição?
A audiência prévia é uma
formalidade mas é também considerada um direito fundamental de participação no
procedimento administrativo. No entanto, parece que quanto ao procedimento
regulamentar, a jurisprudência vai no sentido de desvalorizar essa formalidade,
com base na falta de “legislação própria”. Após uma leitura deste Acórdão do
STA, deve-se salientar que os argumentos utilizados não são de todo
sustentáveis. Por um lado, equipara-se o regulamento ao acto administrativo (“a
intervenção dos particulares em procedimentos de formação de acto regulamentar
é uma vertente do direito de participação procedimental que tem a maior
importância quer por se situar no momento verdadeiramente genético das decisões
administrativas, quer por o regulamento ter eficácia por vezes idêntica à do
acto administrativo”), por outro lado, desvaloriza-se o papel da audiência dos
interessados no procedimento regulamentar (“a audiência prévia e a discussão
pública não são garantias de legalidade, nem fornecem necessariamente elementos
úteis, ou ao menos indispensáveis, ao controle jurisdicional”).
Na minha opinião, não me
parece que estejamos perante um sistema eficaz no que ao procedimento
regulamentar diz respeito. Não me parece que a falta da legislação própria seja
uma causa justificativa da falta de audiências prévias. O regulamento não deve
ser desvalorizado face ao acto administrativo e neste caso existe claramente um
desvirtuar do princípio da participação dos interessados. Aponho as minhas
reservas quanto a este sistema e penso que é da maior urgência aprovar a
legislação que estabeleça os termos em que deve ser conduzida a audiência
prévia e em que os interessados devem ser ouvidos.
Por fim, diria ainda que não
concordo quando se refere que a exigência legal da apreciação pública de todos
os projectos de regulamentos garante a participação dos interessados no
procedimento regulamentar, e permite salvar o CPA de uma inconstitucionalidade
por omissão. A audiência dos interessados e a apreciação pública são formas
completamente diferentes de participação sendo que a primeira é muito mais
directa e representa uma consagração muito mais fiel do princípio de
participação dos interessados e do princípio de colaboração da Administração
com os particulares. Podemos, talvez, não estar perante uma
inconstitucionalidade por omissão mas estamos, sem dúvida, perante um desvirtuamento
destes princípios no procedimento regulamentar.
Francisco Felner da Costa
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