No âmbito
das garantias impugnatórias (aquelas em que, perante um acto administrativo já
praticado, os particulares são admitidos por lei a impugnar esse acto) são
distinguíveis, com apoio no 158º, nº2 do CPA, quatro grandes espécies das
mesmas: a reclamação, o recurso hierárquico, o recurso hierárquico impróprio e
o recurso tutelar.
O presente post versará sobre a segunda destas
categorias e esmiuçará se faz ainda sentido, hoje, falar-se na bipartição entre
recurso hierárquico facultativo e recurso hierárquico necessário.
O recurso
hierárquico é um dos mecanismos através do qual o superior hierárquico pode
exercer o seu poder de intervenção sobre o resultado do exercício das
competências do subalterno. Se incidir sobre um acto administrativo susceptível
de impugnação judicial, diz-se facultativo. Se, ao contrário, incidir sobre um
acto administrativo insusceptível de impugnação judicial, dir-se-á necessário.
Isto mesmo dispõe o artigo 167º, nº1 do CPA. A tónica está, portanto, na
possibilidade dos interessados reagirem judicialmente contra uma determinada
conduta administrativa.
Esta
trata-se de uma distinção que não é alheia a considerações históricas. A este
propósito proporia mesmo um exercício cronológico tripartido, com marcos
divisionais nos anos de 1989 e de 2003.
Começando
pelo segundo, vigorou até ao ano de 2003 o art. 25º, nº1 da LPTA, que fazia
depender a impugnabilidade contenciosa dos actos administrativos do seu
carácter definitivo e executório, sendo considerados verticalmente definitivos
apenas os actos praticados sem superiores hierárquicos ou por subalternos ao
abrigo de delegação de poderes, ou no exercício de competências exclusivas.
Ou seja,
todos os demais actos, os não definitivos dos subalternos, eram insusceptíveis
de impugnação contenciosa, pelo que a única forma de reacção contra tais actos
era o recurso hierárquico, que por esse motivo se dizia ‘necessário’. Apenas na
hipótese de tal decisão não ser favorável aos recorrentes, se tornaria possível
impugnar judicialmente a decisão definitiva do superior.
Num
exercício de analepse, proponho que se recue até à data da segunda revisão
constitucional. E isto porque o dito 25º/1 LPTA tinha, até 1989, forte amparo
na constituição. Até tal data conferia-se aos particulares a possibilidade do
recurso de contencioso contra actos administrativos apenas na situação de estes
serem definitivos e executórios. E foi daí que nasceu a dicotomia entre
recursos hierárquicos necessários e facultativos.
A revisão constitucional
de 1989 alterou o disposto no 268º/4 CRP, que abandonou o critério da
definitividade, passando a dispor que são recorríveis “quaisquer actos
administrativos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos dos
particulares”, adoptando uma postura consideravelmente mais subjectivista, da
qual se destaca a referência à lesividade do acto, situação que gerou dúvidas
na doutrina quanto à constitucionalidade do recurso hierárquico necessário.
Para uma
parte da doutrina, como os professores Marcelo Rebelo de Sousa, Gomes
Canotilho, Vital Moreira, Paulo Otero, e Vasco Pereira da Silva, estaria em
causa a dita inconstitucionalidade superveniente do artigo 25º, nº1 LPTA. Para
outros professores, como Freitas do Amaral, Sérvulo Correia ou Vieira de Andrade,
tal inconstitucionalidade não se verificava.
Na óptica do
Professor Vasco Pereira da Silva, a revisão constitucional de 1989 deixou de
requerer a definitividade vertical do acto como pressuposto para que se consuma
o recurso contencioso. Doravante, tornava-se somente necessário que o acto
fosse lesivo. Assim, os recursos hierárquicos pós-1989 estariam feridos de
inconstitucionalidade.
O Professor
acrescentava, para lá do argumento da letra da constituição, que a manutenção
do regime até 1989 em vigor colidia com o direito fundamental do acesso à
justiça, violando o nosso conhecido princípio da tutela jurídica dos interesses
dos particulares. São ainda elencados por Vasco Pereira da Silva argumentos
como o da colisão com o princípio da desconcentração administrativa (constante
no artigo 267º, nº2 da Constituição) ou da separação entre a Administração e a
justiça, pelo facto de fazer depender o recurso para o tribunal da prévia
utilização da garantia administrativa.
Os Professores Feitas
do Amaral e Vieira de Andrade são partidários da não inconstitucionalidade
resultante da revisão de 1989. Esta doutrina interpretava o nº4 do 268º como
uma simples determinação de que a garantia contenciosa não pode ser negada
quando exista um acto administrativo.
Para Vieira de Andrade
a impugnação administrativa obrigatória não resulta inconstitucional. E isto
porque, no seu entender, o 268ª/4 apenas impõe que não se exclua, ainda que em
último caso, o acesso a meios contenciosos em caso de lesão originada por acto
administrativo. E, efectivamente esse acesso não é negado, acabando por ser
sempre possível.
Além do mais, esta
doutrina via ainda na suspensão imediata do acto recorrido um “abrigo” para a
não lesividade deste, expressamente requerida pelo 268º/4 CRP (embora tal
argumento seja indubitavelmente improcedente pois existe um hiato temporal
entre a prática do acto e o recurso contra o mesmo, período no qual o acto
produzirá sempre efeitos lesivos).
Esta doutrina afirma
ainda que os casos de recurso hierárquico necessário são aceitáveis à luz do princípio da unidade da acção
administrativa e da economia processual do contencioso administrativo.
E talvez seja este último
argumento o mais convincente para a jurisprudência no sentido de ter
considerado, de forma unânime, não resultar do novo preceito do 268º/4 uma
inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário.
Por fim, a grande
reforma do contencioso administrativo (2003/2004) traz-nos de volta ao momento
cronológico inicial, e coloca-nos no terceiro momento da referida tripartição.
É consensual na
doutrina que hoje em dia, após a reforma do CPTA, se tem por estabelecido como
regra geral o recurso hierárquico facultativo. Diz-nos o Professor Marcelo Rebelo de Sousa que “Actualmente, o
artigo 59º, nº5 do CPTA permite claramente a possibilidade de impugnação de
actos administrativos na pendência dos recursos hierárquicos que os tenham como
objecto, o que implica o carácter meramente facultativo destes recursos.
Existe, todavia, a possibilidade de a lei estabelecer recursos hierárquicos
necessários em situações específicas, desde que respeitados os requisitos
constitucionais.”
O Professor
Vasco Pereira da Silva retira uma conclusão algo diferente, dizendo que o CPTA
veio juntar à inconstitucionalidade a revogação das múltiplas determinações legais
avulsas que instituem recursos hierárquicos necessários. Inviabiliza-se, assim,
toda e qualquer situação de recurso hierárquico necessário.
Por isso, o professor
entende que o recurso hierárquico necessário passou a ser “útil”: o mecanismo
do art. 59.º/4 CPTA visa incentivar os particulares a recorrer à impugnação
administrativa ao invés da contenciosa, mas não lhes retira tal faculdade.
Os Professores Feitas
do Amaral e Vieira de Andrade são da opinião de que o legislador ordinário
continuará a estar livre de exigir a definitividade do acto, mediante
legislação avulsa e, desta forma, a dualidade de recurso necessário e
facultativo continuará a fazer sentido.
Em meu
entender, resulta claro que a partir da revisão constitucional o preceito do
25º CPTA se tornou inconstitucional. Isto porque, olhando à letra do 268º, nº4,
se é “garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus
direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo (...) a impugnabilidade
de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua
forma(...)” não há como negar ao particular o direito de impugnar judicialmente
um acto, obrigando-o a recorrer primeiramente para a superior hierárquico
Para lá do
argumento literal é ainda invocável o argumento histórico. Ora, se o legislador
retirou a referência a “definitividade” no preceito, pretendia decerto conferir
maior subjectivismo ao texto constitucional. Retirada da norma qualquer
referência à principal condição de existência de recursos hierárquicos
necessários, torna-se claro que o legislador pretendeu esse avanço no sentido
da impugnabilidade judicial de quaisquer actos. E, diria mesmo, essa é uma
interpretação que a reforma do contencioso administrativo veio confirmar.
Não é ainda
descabido, no caso, invocar igualmente o artigo 20º, nº1 da Constituição, em
adição aos demais argumentos constitucionais frisados pelo Professor Vasco
Pereira da Silva.
Assim, e uma vez
inconstitucional, resulta claro que, ainda que em legislação avulsa, deveria
estar vedado ao legislador criar situações de recurso hierárquico necessário,
distanciando-se da regra geral do CPTA e, fundamentalmente, daquilo que são os
imperativos constitucionais.
Independentemente disso, e
com Marcelo Rebelo de Sousa, creio que o sentido será o da uniformização dos
regimes dos recursos hierárquicos e necessários, e o progressivo caminho rumo à
definitiva extinção da figura necessária.
Deste modo, e em resposta à
interrogação inicial. Recurso Hierárquico? Hoje, e desde 1989, já não necessário.
Tiago Quaresma, nº22115
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