domingo, 5 de maio de 2013

Recurso Hierárquico. Necessário?



No âmbito das garantias impugnatórias (aquelas em que, perante um acto administrativo já praticado, os particulares são admitidos por lei a impugnar esse acto) são distinguíveis, com apoio no 158º, nº2 do CPA, quatro grandes espécies das mesmas: a reclamação, o recurso hierárquico, o recurso hierárquico impróprio e o recurso tutelar.


O presente post versará sobre a segunda destas categorias e esmiuçará se faz ainda sentido, hoje, falar-se na bipartição entre recurso hierárquico facultativo e recurso hierárquico necessário.

O recurso hierárquico é um dos mecanismos através do qual o superior hierárquico pode exercer o seu poder de intervenção sobre o resultado do exercício das competências do subalterno. Se incidir sobre um acto administrativo susceptível de impugnação judicial, diz-se facultativo. Se, ao contrário, incidir sobre um acto administrativo insusceptível de impugnação judicial, dir-se-á necessário. Isto mesmo dispõe o artigo 167º, nº1 do CPA. A tónica está, portanto, na possibilidade dos interessados reagirem judicialmente contra uma determinada conduta administrativa.

Esta trata-se de uma distinção que não é alheia a considerações históricas. A este propósito proporia mesmo um exercício cronológico tripartido, com marcos divisionais nos anos de 1989 e de 2003.
Começando pelo segundo, vigorou até ao ano de 2003 o art. 25º, nº1 da LPTA, que fazia depender a impugnabilidade contenciosa dos actos administrativos do seu carácter definitivo e executório, sendo considerados verticalmente definitivos apenas os actos praticados sem superiores hierárquicos ou por subalternos ao abrigo de delegação de poderes, ou no exercício de competências exclusivas.
Ou seja, todos os demais actos, os não definitivos dos subalternos, eram insusceptíveis de impugnação contenciosa, pelo que a única forma de reacção contra tais actos era o recurso hierárquico, que por esse motivo se dizia ‘necessário’. Apenas na hipótese de tal decisão não ser favorável aos recorrentes, se tornaria possível impugnar judicialmente a decisão definitiva do superior.
Num exercício de analepse, proponho que se recue até à data da segunda revisão constitucional. E isto porque o dito 25º/1 LPTA tinha, até 1989, forte amparo na constituição. Até tal data conferia-se aos particulares a possibilidade do recurso de contencioso contra actos administrativos apenas na situação de estes serem definitivos e executórios. E foi daí que nasceu a dicotomia entre recursos hierárquicos necessários e facultativos.


A revisão constitucional de 1989 alterou o disposto no 268º/4 CRP, que abandonou o critério da definitividade, passando a dispor que são recorríveis “quaisquer actos administrativos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares”, adoptando uma postura consideravelmente mais subjectivista, da qual se destaca a referência à lesividade do acto, situação que gerou dúvidas na doutrina quanto à constitucionalidade do recurso hierárquico necessário.
Para uma parte da doutrina, como os professores Marcelo Rebelo de Sousa, Gomes Canotilho, Vital Moreira, Paulo Otero, e Vasco Pereira da Silva, estaria em causa a dita inconstitucionalidade superveniente do artigo 25º, nº1 LPTA. Para outros professores, como Freitas do Amaral, Sérvulo Correia ou Vieira de Andrade, tal inconstitucionalidade não se verificava.

Na óptica do Professor Vasco Pereira da Silva, a revisão constitucional de 1989 deixou de requerer a definitividade vertical do acto como pressuposto para que se consuma o recurso contencioso. Doravante, tornava-se somente necessário que o acto fosse lesivo. Assim, os recursos hierárquicos pós-1989 estariam feridos de inconstitucionalidade.
O Professor acrescentava, para lá do argumento da letra da constituição, que a manutenção do regime até 1989 em vigor colidia com o direito fundamental do acesso à justiça, violando o nosso conhecido princípio da tutela jurídica dos interesses dos particulares. São ainda elencados por Vasco Pereira da Silva argumentos como o da colisão com o princípio da desconcentração administrativa (constante no artigo 267º, nº2 da Constituição) ou da separação entre a Administração e a justiça, pelo facto de fazer depender o recurso para o tribunal da prévia utilização da garantia administrativa.

Os Professores Feitas do Amaral e Vieira de Andrade são partidários da não inconstitucionalidade resultante da revisão de 1989. Esta doutrina interpretava o nº4 do 268º como uma simples determinação de que a garantia contenciosa não pode ser negada quando exista um acto administrativo.
Para Vieira de Andrade a impugnação administrativa obrigatória não resulta inconstitucional. E isto porque, no seu entender, o 268ª/4 apenas impõe que não se exclua, ainda que em último caso, o acesso a meios contenciosos em caso de lesão originada por acto administrativo. E, efectivamente esse acesso não é negado, acabando por ser sempre possível.
Além do mais, esta doutrina via ainda na suspensão imediata do acto recorrido um “abrigo” para a não lesividade deste, expressamente requerida pelo 268º/4 CRP (embora tal argumento seja indubitavelmente improcedente pois existe um hiato temporal entre a prática do acto e o recurso contra o mesmo, período no qual o acto produzirá sempre efeitos lesivos).
Esta doutrina afirma ainda que os casos de recurso hierárquico necessário são aceitáveis  à luz do princípio da unidade da acção administrativa e da economia processual do contencioso administrativo.
E talvez seja este último argumento o mais convincente para a jurisprudência no sentido de ter considerado, de forma unânime, não resultar do novo preceito do 268º/4 uma inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário.


Por fim, a grande reforma do contencioso administrativo (2003/2004) traz-nos de volta ao momento cronológico inicial, e coloca-nos no terceiro momento da referida tripartição.
É consensual na doutrina que hoje em dia, após a reforma do CPTA, se tem por estabelecido como regra geral o recurso hierárquico facultativo. Diz-nos o Professor Marcelo Rebelo de Sousa que “Actualmente, o artigo 59º, nº5 do CPTA permite claramente a possibilidade de impugnação de actos administrativos na pendência dos recursos hierárquicos que os tenham como objecto, o que implica o carácter meramente facultativo destes recursos. Existe, todavia, a possibilidade de a lei estabelecer recursos hierárquicos necessários em situações específicas, desde que respeitados os requisitos constitucionais.”

O Professor Vasco Pereira da Silva retira uma conclusão algo diferente, dizendo que o CPTA veio juntar à inconstitucionalidade a revogação das múltiplas determinações legais avulsas que instituem recursos hierárquicos necessários. Inviabiliza-se, assim, toda e qualquer situação de recurso hierárquico necessário.
Por isso, o professor entende que o recurso hierárquico necessário passou a ser “útil”: o mecanismo do art. 59.º/4 CPTA visa incentivar os particulares a recorrer à impugnação administrativa ao invés da contenciosa, mas não lhes retira tal faculdade.

Os Professores Feitas do Amaral e Vieira de Andrade são da opinião de que o legislador ordinário continuará a estar livre de exigir a definitividade do acto, mediante legislação avulsa e, desta forma, a dualidade de recurso necessário e facultativo continuará a fazer sentido.


Em meu entender, resulta claro que a partir da revisão constitucional o preceito do 25º CPTA se tornou inconstitucional. Isto porque, olhando à letra do 268º, nº4, se é “garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo (...) a impugnabilidade de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma(...)” não há como negar ao particular o direito de impugnar judicialmente um acto, obrigando-o a recorrer primeiramente para a superior hierárquico
Para lá do argumento literal é ainda invocável o argumento histórico. Ora, se o legislador retirou a referência a “definitividade” no preceito, pretendia decerto conferir maior subjectivismo ao texto constitucional. Retirada da norma qualquer referência à principal condição de existência de recursos hierárquicos necessários, torna-se claro que o legislador pretendeu esse avanço no sentido da impugnabilidade judicial de quaisquer actos. E, diria mesmo, essa é uma interpretação que a reforma do contencioso administrativo veio confirmar.
Não é ainda descabido, no caso, invocar igualmente o artigo 20º, nº1 da Constituição, em adição aos demais argumentos constitucionais frisados pelo Professor Vasco Pereira da Silva. 
Assim, e uma vez inconstitucional, resulta claro que, ainda que em legislação avulsa, deveria estar vedado ao legislador criar situações de recurso hierárquico necessário, distanciando-se da regra geral do CPTA e, fundamentalmente, daquilo que são os imperativos constitucionais.
Independentemente disso, e com Marcelo Rebelo de Sousa, creio que o sentido será o da uniformização dos regimes dos recursos hierárquicos e necessários, e o progressivo caminho rumo à definitiva extinção da figura necessária.

Deste modo, e em resposta à interrogação inicial. Recurso Hierárquico? Hoje, e desde 1989, já não necessário.

Tiago Quaresma, nº22115

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