O percurso e os desafios da
Responsabilidade Extracontratual do Estado
Começámos a
estudar em Direito Administrativo II o instituto da responsabilidade
extracontratual do Estado, referida também por responsabilidade civil do
Estado. A primeira expressão talvez seja mais feliz, no entanto, uma vez que se
trata duma figura de Direito Público e não de Direito Privado, como o emprego
do termo Civil parece sugerir. No estudo desta figura temos vindo a abordar as
suas origens e a forma como se transformou em face dos obstáculos que lhe eram
colocados. O caminho percorrido trouxe frutos, como espero conseguir agora
demonstrar, mas ainda se colocam alguns desafios que, a serem resolvidos, podem
contribuir para uma melhoria do instituto. Para tal é necessário descobrir a
teoria por trás do instituto e analisar os seus fundamentos, estudar o regime à
luz do tratamento constitucional que lhe é dado e averiguar quais as suas deficiências para ver que
forma pode ser melhorado.
As
construções jurídicas que servem hoje de base à figura não foram estabelecidas
da noite para o dia, mas sim trabalhadas ao longo do tempo com uma profunda
ligação às ideias segundo as quais o Estado e as suas funções eram
conceptualizados em cada momento, tendo ele próprio sofrido um processo de
transformação ao longo da História. A teoria que imperava no momento prévio à
origem da responsabilidade do Estado era a chamada teoria da irresponsabilidade do Estado, derivada da ideia do Estado Absoluto no qual o poder, de
inspiração divina, se concentrava no monarca e em virtude do qual se definia as
relações com os particulares no sentido em que não lhes eram reconhecidos
quaisquer direitos face ao Estado, pelo menos direitos que merececem a
protecção deste, sendo consequentemente pautado pela ausência de qualquer
responsabilidade extracontratual do Estado.
Numa fase seguinte, o Estado Absoluto encontrou um fundamento para o
exercício do seu poder diferente do fundamento da origem do mesmo. O monarca já
não actuava apenas porque sim, mas com justificação na prossecução do interesse
público, ou seja, embora o Rei o fosse por força divina, a Coroa tinha o dever de
trabalhar para o bem comum. Mas porque os particulares ainda se encontravam
numa posição desprotegida e porque o Estado Absoluto, sendo absoluto, não
estava sujeito ao Direito, surgiu a teoria
do Fisco, segundo a qual se ficcionaria uma pessoa colectiva de direito
privado assumida pelo Estado e chamada Fisco, de modo que apesar da actuação do
Estado à margem do Direito os lesados poderiam ser recompensados pelo Fisco,
com o qual se relacionariam segundo as regras do Direito Privado, em virtude da
dupla personalidade do Estado. Com o aparecimento do Fisco forma-se a dicotomia
da “gestão pública” e “gestão privada”,
segundo a qual a actuação do Estado seria feita sob a forma de gestão pública quando fosse uma
expressão da sua soberania e a forma de gestão
privada quando se relacionasse com outros sujeitos como se de um ente
privado se tratasse. O Fisco seria
chamado a responder pelos danos causados nos particulares apenas no segundo
caso, e quando agisse com culpa. Embora o aparecimento da responsabilidade do Estado
seja já uma vitória, mas abriu a porta a uma distinção que ainda hoje subsiste,
bem como os problemas a ela subjacentes. Esta construção foi denominada de responsabilidade subjectiva do Estado.
O surgimento
do Estado Liberal trouxe ideias de limitação ao poder do Estado e protecção dos
particulares, pelo que era apenas natural começar a pensar-se na aplicação de
algum tipo de Direito Público à responsabilização do Estado. Esta necessidade
decorria das incompatibilidades que o Direito Privado tinha com a natureza da
pessoa do Estado e a sua actuação. O ponto de viragem foi o caso de Agnès
Blanco, muito referenciado por VASCO PEREIRA DA SILVA nas suas aulas teóricas
de Direito Administrativo, I e II, e por várias vezes referindo-se a ele como
um “caso
infeliz, com uma sentença ainda mais infeliz, fruto da infância traumática do
Direito Administrativo”. Neste caso, em que a criança de 5 anos foi
atropelada por um vagão do Estado, o Tribunal de Conflitos francês determinou
que as regras de direito público não eram aplicadas ao Estado mas sim regras
especiais, tendo sido assim que o Direito Administrativo afirmou a sua
autonomia. Desta forma abriram-se as portas para o aparecimento de uma
responsabilidade do Estado pública, formando-se a ideia da culpa do serviço na qual era dispensada a identificação do agente
causador do dano, mas bastava um funcionamento
anormal do serviço (faute du service) que, segundo PAUL DUEZ, era
caracterizado por um mau funcionamento, funcionamento tardio, ou simples
inexistência de um serviço da Administração que deveria existir. Isto pautou
uma queda da distinção entre gestão pública e gestão privada, mas começou a
abranger uma maior amplitude de situações, podendo dizer que foi mais uma
vitória para os particulares.
Com o
aparecimento do Estado Social, em que se exigia ao Estado que tivesse uma
intervenção mais ampla na vida do quotidiano, sobretudo na actividade económica,
no seguimento da sua importante função de visar o bem comum. Por outro lado, os
próprios particulares começam a controlar a actuação do estado, num processo a
que JORGE REIS NOVAIS chama de “estadualização
da sociedade e recíproca socialização do Estado”. Mas se o Estado passou a ter um grau de intervenção maior, o risco
de actos lesivos dos particulares aumentou da mesma forma, pelo que surgiu uma
nova necessidade de proteger os particulares desses mesmos riscos. Estes fundamentaram
a ideia de que a ocorrer danos nos particulares devido a actuações do Estado,
impunha-se a este a obrigação de indemnizar por via de uma responsabilização
objectiva assente na demonstração de um dano, de uma actuação do Estado, e de um
nexo de causalidade entre ambos. Mais uma vez ficou alargado o espectro de
domínios em que os particulares teriam os seus danos reparados pelo Estado.
Hoje, o
nosso ordenamento jurídico dá importância constitucional à responsabilidade do
Estado, estabelecendo no artigo 22º da Constituição um princípio geral de responsabilidade do
Estado: “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis,
em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes,
por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa
desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias
ou prejuízo para outrem”. Não só o nosso Direito ultrapassou a necessidade da
construção do Fisco, ao admitir a responsabilidade directa do Estado, incluiu
também a responsabilidade subjectiva (delitual), por referência À “violação dos direitos, liberdades e
garantias”, e a responsabilidade objectiva (ou por facto lícito), por referência ao “prejuízo para outrem”) com valor jurídico constitucional. Esta foi
uma grande evolução por si só neste domínio. Contra a inclusão da
responsabilidade objectiva manifesta-se RUI MEDEIROS, mas JORGE MIRANDA é claro
e convicente na interpretação que faz deste artigo, lembrando que a norma prevê
casos em que haja apenas prejuizo para outrem em alternativa à violação de
direitos. Esta norma integra a constituição em sentido material (JORGE
MIRANDA), e por isso constitui um princípio geral do nosso Estado de Direito, o
que representa um progresso significativo.
O desenvolvimento
legal deste princípio consitucional era feito, até 2007, pelo DL 48051/67 que
dispunha sobre as regras de responsabilidade do Estado no exercío de
actividades de gestão privadas, deixando que os actos de gestão privada do
Estado se submetessem ao regime do Código Civil, o que introduziu uma dualidade
de regimes. Esta construção trazia desde logo dificuldades que decorriam da
fluidez dos próprios critérios de delimitação da actuação do Estado. Como
distinguir gestão privada de gestão pública? As inseguranças e os problemas
desta solução eram óbvias, e a dificuldade de determinação do regime aplicável
bem como da competência jurisdicional para julgar os casos, resultava em
processos judiciais que duravam décadas a ser decididos, muitas vezes tendo de
se atribuir as indemnizações aos sucessíveis do lesado, como referiu o Sr.
Professor Vasco Pereira da Silva nas suas aulas teóricas de Direito
Administrativo II. Esperava-se que a entrada em vigor do Regime da
Responsabilidade Civil do Estado e Demais Entidades Públicas (RRCEC), aprovado
pela Lei 67/2007, pusesse fim a esta dualidade, mas a solução encontrada pelo
legislador manteve o problema em aberto, ao definir o âmbito de aplicação do
Regime de duas formas: uma como “actuação regulada por disposições ou
princípios de direito administrativo” e outra como “exercício de prerrogativas de poder público” (art. 1º/2). E assim
recomeça a discussão doutrinária, sobre como interpretar esta norma. Sem querer
alongar este tema, que já foi tratado noutros artigos especificamente dedicados
a isto, a maioria da doutrina defende a manutenção da dualidade de regimes com
base na expressão “exercício de prerrogativas de poder público”. Por outro
lado, VASCO PEREIRA DA SILVA recorre a uma interpretação extensiva do termo “actuações
reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo” para
sustentar o fim da dualidade e a aplicação do RRCEC a toda a actividade
administrativa. Esta última posição, do Sr. Professor, parece-me mais adequada
à protecção dos particulares, em face dos problemas que a dualidade dos
regimes, acima analisados, levantam. Este é mais uma evolução do instituto, que
apesar de tudo, apresenta ainda dificuldades.
O RRCEC
dispõe diferentes regras consoante o Estado actue no exercício da função
administrativa, da função jurisdicional, ou da função político-legislativa,
sendo com esta que me quero ocupar, devido aos problemas que levanta. O art.
15º prevê uma responsabilidade delitual no exercício da função político-legislativa,
exigindo um acto (15º/1) ou omissão (15º/3) ilegais (lato sensu 15º/1 e 2), um dano anormal causado por estes (15º/1) e
culpa do Estado, na forma de “omissão de
diligências susceptíveis de evitar a situação de ilicitude” (15º/4). Este
último pressuposto causa problemas que na responsabilidade por danos decorrentes
de outras funções não existe, uma vez que em casos como aqueles em que a
Administração pratica actos sem ter competência para o efeito a entidade ou o
órgão autor do acto ilegal podem eximir-se da culpa demonstrando que dado a
complexidade do ordenamento jurídico bem como o facto de este estar em
constante mudança tornam demasiado difícil apurar o quadro legal aplicável.
Torna-se ainda mais fácil demonstrar que não houve culpa fazendo referência à
escassez de meios dessa entidade, o que significa que muitas vezes, os danos
sofridos pelos particulares não podem ser imputados ao Estado. De facto,
nenhuma das partes tem culpa, mas coloca-se a questão: não será demasiado
injusto que seja o particular a responder pelos danos, quando o Estado tem uma
capacidade financeira infinitamente maior (talvez hoje já não tanto, mas ainda
assim, considerável) em relação ao particular? Este problema adensa-se quando
se tem em conta que não basta a verificação de um dano qualquer para que haja
lugar à responsabilidade delitual do Estado. É necessário que seja um dano
anormal, o que remete para um critério demasiado fluído, que oscila com tantos
factores que chega a causar grandes injustiças comparativas uma vez que o que
hoje é anormal amanha pode não o ser. A insegurança e a desprotecção do
particular são evidentes, nos casos de responsabilidade pelo exercício de
funções político-legislativas, o que torna indispensável uma revisão no sentido
de incluir a responsabilidade objectiva, por um lado, e uma modificação do
pressuposto “dano anormal”.
Apesar do
caminho percorrido, subsistem ainda problemas a resolver.
Bibliografia:
Direito Público Sem Fronteiras - VASCO PEREIRA DA SILVA
A responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública
nos sistemas jurídicos brasileiro e português - uma análise comparada
Bibliografia:
Direito Público Sem Fronteiras - VASCO PEREIRA DA SILVA
A responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública
nos sistemas jurídicos brasileiro e português - uma análise comparada
Tomás Tudela, nº 20658
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