sábado, 18 de maio de 2013

O percurso e os desafios da Responsabilidade Extracontratual do Estado



O percurso e os desafios da Responsabilidade Extracontratual do Estado

Começámos a estudar em Direito Administrativo II o instituto da responsabilidade extracontratual do Estado, referida também por responsabilidade civil do Estado. A primeira expressão talvez seja mais feliz, no entanto, uma vez que se trata duma figura de Direito Público e não de Direito Privado, como o emprego do termo Civil parece sugerir. No estudo desta figura temos vindo a abordar as suas origens e a forma como se transformou em face dos obstáculos que lhe eram colocados. O caminho percorrido trouxe frutos, como espero conseguir agora demonstrar, mas ainda se colocam alguns desafios que, a serem resolvidos, podem contribuir para uma melhoria do instituto. Para tal é necessário descobrir a teoria por trás do instituto e analisar os seus fundamentos, estudar o regime à luz do tratamento constitucional que lhe é dado e  averiguar quais as suas deficiências para ver que forma pode ser melhorado. 

As construções jurídicas que servem hoje de base à figura não foram estabelecidas da noite para o dia, mas sim trabalhadas ao longo do tempo com uma profunda ligação às ideias segundo as quais o Estado e as suas funções eram conceptualizados em cada momento, tendo ele próprio sofrido um processo de transformação ao longo da História. A teoria que imperava no momento prévio à origem da responsabilidade do Estado era a chamada teoria da irresponsabilidade do Estado, derivada da  ideia do Estado Absoluto no qual o poder, de inspiração divina, se concentrava no monarca e em virtude do qual se definia as relações com os particulares no sentido em que não lhes eram reconhecidos quaisquer direitos face ao Estado, pelo menos direitos que merececem a protecção deste, sendo consequentemente pautado pela ausência de qualquer responsabilidade extracontratual do Estado.  Numa fase seguinte, o Estado Absoluto encontrou um fundamento para o exercício do seu poder diferente do fundamento da origem do mesmo. O monarca já não actuava apenas porque sim, mas com justificação na prossecução do interesse público, ou seja, embora o Rei o fosse por força divina, a Coroa tinha o dever de trabalhar para o bem comum. Mas porque os particulares ainda se encontravam numa posição desprotegida e porque o Estado Absoluto, sendo absoluto, não estava sujeito ao Direito, surgiu a teoria do Fisco, segundo a qual se ficcionaria uma pessoa colectiva de direito privado assumida pelo Estado e chamada Fisco, de modo que apesar da actuação do Estado à margem do Direito os lesados poderiam ser recompensados pelo Fisco, com o qual se relacionariam segundo as regras do Direito Privado, em virtude da dupla personalidade do Estado. Com o aparecimento do Fisco forma-se a dicotomia da “gestão pública” e “gestão privada”, segundo a qual a actuação do Estado seria feita sob a forma de gestão pública quando fosse uma expressão da sua soberania e a forma de gestão privada quando se relacionasse com outros sujeitos como se de um ente privado se tratasse.  O Fisco seria chamado a responder pelos danos causados nos particulares apenas no segundo caso, e quando agisse com culpa. Embora o aparecimento da responsabilidade do Estado seja já uma vitória, mas abriu a porta a uma distinção que ainda hoje subsiste, bem como os problemas a ela subjacentes. Esta construção foi denominada de responsabilidade subjectiva do Estado.
 
O surgimento do Estado Liberal trouxe ideias de limitação ao poder do Estado e protecção dos particulares, pelo que era apenas natural começar a pensar-se na aplicação de algum tipo de Direito Público à responsabilização do Estado. Esta necessidade decorria das incompatibilidades que o Direito Privado tinha com a natureza da pessoa do Estado e a sua actuação. O ponto de viragem foi o caso de Agnès Blanco, muito referenciado por VASCO PEREIRA DA SILVA nas suas aulas teóricas de Direito Administrativo, I e II, e por várias vezes referindo-se a ele como um  caso infeliz, com uma sentença ainda mais infeliz, fruto da infância traumática do Direito Administrativo”. Neste caso, em que a criança de 5 anos foi atropelada por um vagão do Estado, o Tribunal de Conflitos francês determinou que as regras de direito público não eram aplicadas ao Estado mas sim regras especiais, tendo sido assim que o Direito Administrativo afirmou a sua autonomia. Desta forma abriram-se as portas para o aparecimento de uma responsabilidade do Estado pública, formando-se a ideia da culpa do serviço na qual era dispensada a identificação do agente causador do dano, mas bastava um funcionamento anormal do serviço (faute du service) que, segundo PAUL DUEZ, era caracterizado por um mau funcionamento, funcionamento tardio, ou simples inexistência de um serviço da Administração que deveria existir. Isto pautou uma queda da distinção entre gestão pública e gestão privada, mas começou a abranger uma maior amplitude de situações, podendo dizer que foi mais uma vitória para os particulares.

Com o aparecimento do Estado Social, em que se exigia ao Estado que tivesse uma intervenção mais ampla na vida do quotidiano, sobretudo na actividade económica, no seguimento da sua importante função de visar o bem comum. Por outro lado, os próprios particulares começam a controlar a actuação do estado, num processo a que JORGE REIS NOVAIS chama de “estadualização da sociedade e recíproca socialização do Estado”. Mas se o Estado passou  a ter um grau de intervenção maior, o risco de actos lesivos dos particulares aumentou da mesma forma, pelo que surgiu uma nova necessidade de proteger os particulares desses mesmos riscos. Estes fundamentaram a ideia de que a ocorrer danos nos particulares devido a actuações do Estado, impunha-se a este a obrigação de indemnizar por via de uma responsabilização objectiva assente na demonstração de um dano, de uma actuação do Estado, e de um nexo de causalidade entre ambos. Mais uma vez ficou alargado o espectro de domínios em que os particulares teriam os seus danos reparados pelo Estado.
Hoje, o nosso ordenamento jurídico dá importância constitucional à responsabilidade do Estado, estabelecendo no artigo 22º da Constituição  um princípio geral de responsabilidade do Estado: “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”. Não só o nosso Direito ultrapassou a necessidade da construção do Fisco, ao admitir a responsabilidade directa do Estado, incluiu também a responsabilidade subjectiva (delitual), por referência À “violação dos direitos, liberdades e garantias”, e a responsabilidade objectiva (ou por facto lícito), por referência ao “prejuízo para outrem”) com valor jurídico constitucional. Esta foi uma grande evolução por si só neste domínio. Contra a inclusão da responsabilidade objectiva manifesta-se RUI MEDEIROS, mas JORGE MIRANDA é claro e convicente na interpretação que faz deste artigo, lembrando que a norma prevê casos em que haja apenas prejuizo para outrem em alternativa à violação de direitos. Esta norma integra a constituição em sentido material (JORGE MIRANDA), e por isso constitui um princípio geral do nosso Estado de Direito, o que representa um progresso significativo.

O desenvolvimento legal deste princípio consitucional era feito, até 2007, pelo DL 48051/67 que dispunha sobre as regras de responsabilidade do Estado no exercío de actividades de gestão privadas, deixando que os actos de gestão privada do Estado se submetessem ao regime do Código Civil, o que introduziu uma dualidade de regimes. Esta construção trazia desde logo dificuldades que decorriam da fluidez dos próprios critérios de delimitação da actuação do Estado. Como distinguir gestão privada de gestão pública? As inseguranças e os problemas desta solução eram óbvias, e a dificuldade de determinação do regime aplicável bem como da competência jurisdicional para julgar os casos, resultava em processos judiciais que duravam décadas a ser decididos, muitas vezes tendo de se atribuir as indemnizações aos sucessíveis do lesado, como referiu o Sr. Professor Vasco Pereira da Silva nas suas aulas teóricas de Direito Administrativo II. Esperava-se que a entrada em vigor do Regime da Responsabilidade Civil do Estado e Demais Entidades Públicas (RRCEC), aprovado pela Lei 67/2007, pusesse fim a esta dualidade, mas a solução encontrada pelo legislador manteve o problema em aberto, ao definir o âmbito de aplicação do Regime de duas formas: uma como “actuação regulada por disposições ou princípios de direito administrativo” e outra como “exercício de prerrogativas de poder público” (art. 1º/2). E assim recomeça a discussão doutrinária, sobre como interpretar esta norma. Sem querer alongar este tema, que já foi tratado noutros artigos especificamente dedicados a isto, a maioria da doutrina defende a manutenção da dualidade de regimes com base na expressão “exercício de prerrogativas de poder público”. Por outro lado, VASCO PEREIRA DA SILVA recorre a uma interpretação extensiva do termo “actuações reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo” para sustentar o fim da dualidade e a aplicação do RRCEC a toda a actividade administrativa. Esta última posição, do Sr. Professor, parece-me mais adequada à protecção dos particulares, em face dos problemas que a dualidade dos regimes, acima analisados, levantam. Este é mais uma evolução do instituto, que apesar de tudo, apresenta ainda dificuldades.

O RRCEC dispõe diferentes regras consoante o Estado actue no exercício da função administrativa, da função jurisdicional, ou da função político-legislativa, sendo com esta que me quero ocupar, devido aos problemas que levanta. O art. 15º prevê uma responsabilidade delitual no exercício da função político-legislativa, exigindo um acto (15º/1) ou omissão (15º/3) ilegais (lato sensu 15º/1 e 2), um dano anormal causado por estes (15º/1) e culpa do Estado, na forma de “omissão de diligências susceptíveis de evitar a situação de ilicitude” (15º/4). Este último pressuposto causa problemas que na responsabilidade por danos decorrentes de outras funções não existe, uma vez que em casos como aqueles em que a Administração pratica actos sem ter competência para o efeito a entidade ou o órgão autor do acto ilegal podem eximir-se da culpa demonstrando que dado a complexidade do ordenamento jurídico bem como o facto de este estar em constante mudança tornam demasiado difícil apurar o quadro legal aplicável. Torna-se ainda mais fácil demonstrar que não houve culpa fazendo referência à escassez de meios dessa entidade, o que significa que muitas vezes, os danos sofridos pelos particulares não podem ser imputados ao Estado. De facto, nenhuma das partes tem culpa, mas coloca-se a questão: não será demasiado injusto que seja o particular a responder pelos danos, quando o Estado tem uma capacidade financeira infinitamente maior (talvez hoje já não tanto, mas ainda assim, considerável) em relação ao particular? Este problema adensa-se quando se tem em conta que não basta a verificação de um dano qualquer para que haja lugar à responsabilidade delitual do Estado. É necessário que seja um dano anormal, o que remete para um critério demasiado fluído, que oscila com tantos factores que chega a causar grandes injustiças comparativas uma vez que o que hoje é anormal amanha pode não o ser. A insegurança e a desprotecção do particular são evidentes, nos casos de responsabilidade pelo exercício de funções político-legislativas, o que torna indispensável uma revisão no sentido de incluir a responsabilidade objectiva, por um lado, e uma modificação do pressuposto “dano anormal”. 

Apesar do caminho percorrido, subsistem ainda problemas a resolver.

Bibliografia:
Direito Público Sem Fronteiras - VASCO PEREIRA DA SILVA
        A responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública
        nos sistemas jurídicos brasileiro e português - uma análise comparada

 Tomás Tudela, nº 20658

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