sábado, 18 de maio de 2013

O fim do contrato administrativo?


1. Introdução

Tradicionalmente, os contratos celebrados pela Administração podiam ser agrupados em duas categorias fundamentais: contratos administrativos e contratos de direito privado da Administração. Esta dicotomia surgiu e fazia sentido no período histórico do Liberalismo, em que se considerava o direito público e o direito privado, respectivamente, erigidos sobre os paradigmas diametralmente opostos da autoridade pública e da liberdade individual.
Porém, é hoje indiscutível a necessidade de a Administração Pública contratar o exercício das suas tarefas. Passou-se, entre os finais do séc. XIX e o fim do séc. XX, de um paradigma de Estado reduzido, que se relacionava com os particulares num modelo de laissez-faire, e com gastos mínimos, para um modelo de Estado Social, ou Providencial, que se descontrolou: as funções do Estado Social aumentaram incomensuravelmente e estenderam-se a praticamente todas as áreas de vida económica, social e cultural das Nações do Ocidente europeu.
O crescimento exponencial das atribuições do Estado nas várias áreas forçou a Administração Pública a empreender esforços no sentido de tornar possível a concretização das mesmas. Sendo impossível executá-las integralmente por si só, a saída natural resultou num incremento muito significativo da contratação pública. A ideia de consenso deixou de ser estranha para o Direito Administrativo, e isto resultou, com o tempo, numa aproximação entre o regime dos contratos administrativos e o dos contratos de direito privado.


2. O Direito Comunitário

Esta aproximação, como demonstra Maria João Estorninho foi principalmente impulsionada pelo Direito Comunitário. Por isso, vale a pena olhar para a evolução do Direito Comunitário para perceber as razões pelas quais se adoptou uma noção de contrato público que, sendo aparentemente neutra relativamente à classificação tradicional, se foi progressivamente tornando mais exigente e abrangente.

Esta evolução consistiu num processo que referida Professora reconduz a quatro passos fundamentais:
i)                    O primeiro passo foi dado pelas chamadas Directivas clássicas, que continham sobretudo regras procedimentais. Parecendo insignificante, isto traz logo implicações conceptuais, vindo bulir com a figura do contrato administrativo, uma vez que essas novas exigências procedimentais eram aplicáveis tanto a contratos administrativos, como aos contratos de direito privado da Administração, e, por outro lado, tanto às entidades administrativas tradicionais, como às entidades públicas sob forma privada. Estes diplomas marcam o início de um processo de convergência e uniformização das regras jurídicas aplicáveis aos diversos contratos da Administração, independentemente da sua natureza pública ou privada (na perspectiva tradicional), começando-se a diluir as fronteiras da figura do contrato administrativo (enquanto contrato da Administração Pública sujeito a regras de direito público), relativamente aos contratos de direito privado da Administração e aos contratos entre particulares.
ii)                   O segundo passo deu-se com a Directiva sectores excluídos que, contendo regras menos rigorosas do que as das Directivas clássicas, as alargam aos sectores inicialmente excluídos, abrangendo no seu âmbito de aplicação subjectivo também os particulares que operem nesses sectores. Libertou-se assim, definitivamente, a noção de contratos públicos da natureza jurídico-pública (directa ou indirecta) da entidade contratante.
iii)                 A jurisprudência comunitária vai alargar ainda mais (e de modo muito significativo) o universo dos contratos públicos, começando a aplicar a contratos da Administração não especificamente abrangidos pelas Directivas os princípios nelas contidos (princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, princípio da igualdade, princípio da transparência, princípio do reconhecimento mútuo e princípio da proporcionalidade).
iv)                 O quarto passo, finalmente, deu-se com as Directivas 89/665/CE, do Conselho, de 21/12/1989 (sobre coordenação das disposições legais, regulamentares e administrativas referentes à aplicação dos procedimentos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos públicos de fornecimentos e de obras) e 92/13/CE, de 25/2/1992 (sobre coordenação das disposições legais, regulamentares e administrativas referentes à aplicação das normas comunitárias nos procedimentos de celebração de contratos das entidades que operem nos sectores da água, energia, transportes e telecomunicações). Estas duas Directivas trouxeram, da perspectiva dos meios processuais, uma uniformização dos regimes aplicáveis a contratos tanto celebrados por entidades públicas como por privadas e, por outro lado, quer a contratos tradicionalmente qualificados como administrativos quer de direito privado da Administração Pública.

A análise desta evolução permite mostrar como o conceito de contratos públicos, de inspiração comunitária, vem mesmo bulir com o de contrato administrativo, e superar as objecções habitualmente formuladas contra a pretensão de desaparecimento do contrato administrativo: a) de que aquela noção nada diz acerca da natureza jurídica de um contrato, b) de que se trata apenas do estabelecimento de regras procedimentais que asseguram a publicidade dos contratos e a não discriminação em razão da nacionalidade; c) de que se trata apenas de um direito comum dos procedimentos desligado da execução; d) de que continua a existir um regime específico de contrato administrativo que não se aplica aos contratos de direito privado, mesmo quando celebrados pela Administração.
Para Maria João Estorninho, a observação desta evolução torna “absolutamente óbvia a necessidade de reconstrução teórica nesta matéria”. Perante uma indiscutível tendência de uniformização de regimes jurídicos, quer em termos procedimentais quer em termos de contencioso, torna-se impossível continuar a defender uma compartimentação estanque entre o procedimento pré-contratual (sujeito a um regime uniforme de natureza jurídico-pública) e o regime substantivo do contrato (onde continuaria a ser possível sujeitar determinados contratos a regimes de direito privado). Esta evolução marcou o fim da dicotomia, em ordenamentos jurídicos de inspiração francesa (como o nosso), entre contratos administrativos (sujeitos a regimes substantivos de direito público e ao contencioso administrativo) e contratos de direito privado da Administração Pública (sujeitos a regimes de direito civil e à jurisdição comum).
Vasco Pereira da Silva, a propósito da reforma do contencioso administrativo e do alargamento do âmbito da jurisdição administrativa, destaca também o surgimento da noção comunitária de contrato público e de um verdadeiro Direito Europeu da Contratação Pública, cujas normas se aplicam independentemente das qualificações internas dadas aos contratos.
No mesmo sentido, João Caupers, observando o movimento uniformizador descrito, decreta também, com Maria João Estorninho, a morte do contrato administrativo de inspiração francesa.


3.  O movimento interno de administrativização dos contratos de direito privado da Administração Pública

Naturalmente, o percurso europeu repercutiu-se no nosso ordenamento interno. Desde logo, a revisão do CPA de 1996 eliminou a figura da autotutela executiva da Administração em sede de execução do contrato, bem como as remissões para normas do Código Civil, em matéria de invalidade, cumprimento e incumprimento do contrato, excepção de não cumprimento e direito de retenção.
Obviamente, isto teve como consequência o maior esbatimento da relevância da distinção entre contratos administrativos e contratos de direito privado da Administração. A sujeição de ambas as formas tradicionais de contratação pública a um regime semelhante apaga as fronteiras entre ambos os modelos de contrato da Administração. Mas é importante perceber que tal ocorre devido ao facto de toda a actividade administrativa, incluindo os contratos (sejam administrativos ou de direito privado), envolver sempre um aspecto comum, que é simultaneamente a sua causa e função: a prossecução do interesse público. E, precisamente por isso, envolve o exercício da função administrativa. Ora, vistas assim as coisas, a regulação pelo direito administrativo dos contratos da Administração surge como evidente, uma vez que o direito administrativo é o direito comum da função administrativa.
A regulação pelo direito administrativo, não tendo que ser integral, tem um patamar mínimo que abrange diversos aspectos:
i)               A fase pré-contratual de todos os contratos da Administração Pública é necessariamente regulada, ao menos em parte, pelo direito administrativo, uma vez que é nesta fase que a AP tem de praticar todos os actos administrativos tendentes à conclusão do contrato (decisão de contratar, escolha do co-contratante, …).
Os defensores da autonomia conceptual da categoria dos contratos administrativos em face dos contratos de direito privado da Administração afirmam frequentemente que a regulação jusadministrativa da fase pré-contratual de um dado contrato é irrelevante para a sua qualificação como contrato administrativo. Relevante seria, isso sim, o seu regime substantivo. Porém, esta afirmação cede perante dois argumentos:
- o regime pré-contratual faz parte do regime substantivo do contrato, por oposição ao seu regime processual (apesar de o CCP designar como substantivo apenas o regime material do contrato);
- o regime pré-contratual influi directamente no regime contratual material, uma vez que do primeiro depende a validade, o conteúdo e o objecto do próprio contrato.
ii)                   Os aspectos objectivos materiais e funcionais de todos os contratos da Administração Pública têm um grau mínimo de regulação pelo direito administrativo.
Conforme decorre do art.2º, nº5, CPA e do art.5º, nº6, CCP, todos os contratos da Administração Pública estão sujeitos aos princípios fundamentais da actividade administrativa (art.266º, CRP, e arts.3º-11º, CPA), bem como às demais normas constitucionais sobre a actividade administrativa (designadamente, as relativas à vinculação da Administração Pública aos direitos fundamentais – art.18º, nº1, CRP – e à participação dos interessados na formação das decisões que lhes digam respeito – art.267º, nº5, CRP).
iii)                 De acordo com Marcelo Rebelo de Sousa, o regime material da generalidade dos contratos da Administração Pública (incluindo os que habitualmente são considerados de direito privado) abrange poderes administrativos de autoridade na execução do contrato (art.302º, CCP).
Isto resulta da circunstância de que todos os contratos da Administração Pública envolvem o exercício da função administrativa, bem como da existência de uma reserva constitucional de direito administrativo quanto ao exercício da função administrativa. Na opinião daquele ilustre Professor, a posição contrária levaria à admissão de que, perante as mutações supervenientes do interesse público, em virtude da natureza de direito privado de dado contrato, a Administração Pública nada pudesse fazer (como resolver unilateralmente ou modificar o contrato) para prosseguir adequadamente aquele interesse, o que seria inconstitucional por violação do princípio da prossecução do interesse público.
iv)            Do ponto de vista do contencioso, o art. 4º do CPTA deixou de referir-se à categoria do contrato administrativo, reconhecendo o movimento de assimilação pelo direito público da generalidade da actividade contratual da Administração Pública.
Ora, a sujeição dos litígios emergentes de um contrato da Administração Pública à jurisdição dos tribunais administrativos tem necessariamente implícita a consideração de que tal contrato tem por objecto uma relação jurídica administrativa (se assim não fosse, a sujeição destes casos à jurisdição dos tribunais administrativos teria que considerar-se inconstitucional à luz do art. 212º, nº3, CRP). Ora, a incidência sobre relações jurídicas administrativas é precisamente o aspecto a que o CCP implicitamente recorre para definir o contrato administrativo.


4. Desenvolvimento

A grande diferença entre Maria João Estorninho e Marcelo Rebelo de Sousa é que a autora considera que a evolução já registada permite concluir pelo desaparecimento da categoria conceptual do contrato administrativo, que se dissolveria numa categoria mais ampla, de inspiração europeia: o contrato público. Maria João Estorninho personifica, assim, plenamente, a tese da unidade de natureza de toda a contratação administrativa.
Por seu turno, Marcelo Rebelo de Sousa, não deixando de observar toda a evolução e influência do Direito Comunitário e do direito interno, analisa a questão nos seus moldes tradicionais: verifica primeiro a inexistência de um critério satisfatório para distinguir o contrato administrativo dos contratos de direito privado da Administração (assunto sobre o qual já foi escrito um post). É esta constatação, aliada à evolução registada, que lhe permite afirmar que, de facto, a fronteira outrora nítida entre contrato administrativo e contrato de direito privado, se tornou praticamente invisível. Porém, como explica o autor, ela tornou-se invisível por uma uniformização (que foi descrita), que consistiu maioritariamente em aplicar aos contratos de direito privado da Administração as regras que já existiam para os contratos administrativos. Ou seja, administrativizaram-se os contratos de direito privado da Administração Pública.
Por conseguinte, Marcelo Rebelo de Sousa não prescinde do conceito de contrato administrativo. Se a evolução recente consistiu em administrativizar os contratos de direito privado da AP, diz o Autor, o certo é que, desde que surgiu o conceito de contrato administrativo, o movimento tem sido sempre o de o fazer abranger cada vez mais contratos. Assim, a evolução recente não é uma novidade, mas o culminar do processo de alargamento do conceito, pelo que se impõe concluir que os contratos da administração tradicionalmente entendidos como de direito privado devam hoje ser considerados como contratos administrativos.
Assim, a grande diferença entre Maria João Estorninho e Marcelo Rebelo de Sousa, sendo que ambos partem da observação de um processo de uniformização tendencialmente total entre as figuras tradicionais, bem como da evidência da falência do Estado social, e da verificação da insuficiência de qualquer critério que permita autonomizar o contrato administrativo, é que uma dissolve-o numa categoria mais ampla (a de contratos públicos) e declara a sua morte, enquanto o outro afirma o seu alargamento extraordinário e ilimitado como o culminar do seu próprio processo histórico de evolução.


5. Conclusão

Independentemente da posição por que se opte, é possível concluir seguramente que, hoje, se ultrapassou a distinção entre contratos administrativos e contratos de direito privado da Administração Pública, podendo reconhecer-se que há uma unidade de natureza de toda a contratação pública, independentemente da expressão que se utilize para designar o conjunto dos contratos da Administração.

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