A questão da
Responsabilidade Civil da Administração é considerada pelo Professor Vasco
Pereira da Silva como “uma das mais traumáticas do Direito Administrativo”. É
fácil perceber o porquê desta classificação. O caso que despoletou toda a
questão da Responsabilidade Civil administrativo chocou o mundo, e mesmo
passado um século e meio, os contornos do mesmo ainda são susceptíveis de criar
constrangimento. Falamos do “arrêt Blanco”.
Muito resumidamente, o caso Blanco
consistiu no atropelamento de uma criança (Agnés Blanco) de cinco anos, que
ficou seriamente ferida (perdeu uma perna), por parte de um vagão pertencente a
uma empresa detida pelo Estado. Os funcionários do vagão agiram, supostamente,
com negligência e não viram a criança a brincar no passeio pelo que esta foi
colhida. O pai de Agnés, Jean Blanco, exigiu imediatamente uma indemnização
pelos danos sofridos. A resposta do tribunal de Bordéus originou uma grande
disputa, pois este declarou-se incompetente para decidir por estar em causa uma
empresa pública ou, por outras palavras, por se reconduzir a responsabilidade,
em última instância, ao Estado.
Esta era uma época em que a
Administração ainda era vista como um poder soberano, que era imposto a todos e
insusceptível de originar compensações (fórmula de Laferrière – “le propre de la souveraineté c’est de s’imposer
à tous sans compensations”). O século XIX era dominado pelo pensamento “the king can do no wrong”. O Professor
Freitas do Amaral admite até “o Estado
era em regra irresponsável (…) nem sequer respondia indirectamente”,
portanto compreende-se a injustiça de que os particulares eram por vezes alvo,
tal como no caso Blanco.
A verdade é que este caso Blanco
abriu um importante precedente em matéria de responsabilidade da Administração.
A Doutrina e mesmo o público em geral aperceberam-se da necessidade de
considerar o Estado como uma entidade à qual se poderiam imputar danos e que
poderia eventualmente ser condenado a indemnizar. Ao invés de uma mera
responsabilidade pessoal dos funcionários, partia-se para uma responsabilidade
solidária da Administração e seus funcionários, titulares de órgãos e agentes.
A matéria conheceu vários avanços e recuos mas, mais tarde, já na primeira
metade do século XX começava-se a admitir a responsabilidade do Estado. Estava
ultrapassado o dogma “the king can do no
wrong”. No entanto, fica visível o trauma sofrido pelo Direito
Administrativo nesta matéria, sobretudo devido às concepções e pensamentos
decorrentes do Estado absoluto.
Avançando
agora para Portugal, verificamos que em 1967, com o novo Código Civil, que veio
substituir o já muito desactualizado (pelo menos nestas matérias de
responsabilidade) Código de Seabra, veio-se regular a responsabilidade civil do
estado por actos de gestão privada.
As leis administrativas tratavam da responsabilidade da Administração “no
domínio dos actos de gestão pública”.
Havia uma dualidade de regimes, cuja raiz estava na distinção entre actos de
gestão privada e actos de gestão pública. Com a mudança de regime e com a nova
Constituição da República a situação alterou-se e urgia a necessidade de
alterar o regime legal de 1967. Apareceram propostas, a mais relevante sendo a
do XIV Governo mas que não vingou por destituição deste e dissolução do
Parlamento.
Porém,
em 2007, foi aprovado pela lei nº 67/2007 o diploma do regime da
responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas
(RCEEP). O Professor Vasco Pereira da Silva é extremamente crítico da actual
distinção feita pela generalidade da Doutrina, principalmente pelo Professor
Freitas do Amaral, entre operações materiais de gestão pública e gestão
privada. O nosso Professor Regente refere ainda o caso do atropelamento, que na
minha opinião ilustra na perfeição a irrelevância desta distinção para efeitos
de apuramento de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais
entidades públicas.
Como
afirma, e bem, o Professor Vasco Pereira da Silva, não faz sentido que se
estabeleçam diferentes regimes, remetendo para o Tribunal Administrativo casos
de gestão pública e para o Tribunal comum casos de gestão privada. O Professor
acrescenta ainda que as ordens no seio da Administração não têm
obrigatoriamente de ser dadas “in loco”, e não faz sentido distinguir entre
gestão privada e gestão pública apenas pela presença ou não do titular do órgão
naquele momento específico.
Outra
crítica apontada pelo Professor Vasco Pereira da Silva direcciona-se precisamente
ao legislador, que podia ter eliminado a distinção e unificado o regime da
responsabilidade civil de todas as operações materiais. Em 2007, aquando da redacção
da nova lei de responsabilidade civil do Estado, o legislador não foi claro e
não unificou de forma explícita o regime. A distinção entre operações materiais
de gestão pública e de gestão privada não é adequada porque vão sempre existir
elementos que permitam apontar num ou noutro sentido e as divergências vão
subsistir. A nova lei de 2007 ao usar a expressões “prorrogativas do poder
público” (expressão traumática na opinião do Professor) e remeter o âmbito de
aplicação da lei para os “acções (…) reguladas por disposições ou princípios do
direito administrativo” (artigo 1º, nº 2 do RCEEP) permitiu que se continuasse
a fazer a distinção entre gestão pública e gestão privada. Os Professores
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, por exemplo, retiram desta
última expressão a referência a actos e operações materiais de gestão pública.
Continuamos
a assistir, deste modo, a uma dualidade de regimes, e a um constante recurso a
uma distinção problemática, porque se defende (na linha dos Professores Marcelo
Rebelo de Sousa, André Salgado Matos e Freitas do Amaral) que se aplica o
artigo 501º do Código Civil à “responsabilidade emergente do «exercício de
actividades de gestão privada» ”, e que se aplica o RCEEP a responsabilidade
civil “emergente do «exercício da função administrativa» ”, ou seja, a
operações materiais de gestão pública.
Concordo
inteiramente com as críticas apontadas pelo Professor Vasco Pereira da Silva e
penso que a distinção entre operações materiais de gestão pública e gestão
privada está completamente ultrapassada e é desprovida de sentido. Não obstante
o legislador não ter sido claro, é possível unificar o regime da
responsabilidade civil extracontratual do Estado e entidades públicas. O
Professor Vasco Pereira da Silva encontra na expressão “princípios” do artigo
1º, nº2 do RCEEP, uma base para a unificação do regime de todas as operações
materiais e de toda a responsabilidade civil da Administração.
Por
último, é perceptível que o direito administrativo tem tido uma evolução
gradual neste campo da responsabilidade civil. A infância traumática,
influenciada pelo Estado absoluto, e a dualidade de regimes por força da
distinção operada entre gestão pública e gestão privada contribuíram para tal. É
por estas razões apontadas, e pela necessidade de unificar o regime que o
Professor Vasco Pereira da Silva refere que o legislador necessita urgentemente
de ter a psicanálise em dia e quando for feita uma nova lei, ter capacidade
para debelar os traumas do direito administrativo em matéria de
responsabilidade civil.
Francisco Felner
Sub Turma 3
Sem comentários:
Enviar um comentário