sábado, 18 de maio de 2013

Responsabilidade Civil da Administração: dos traumas da infância à psicanálise do legislador


            A questão da Responsabilidade Civil da Administração é considerada pelo Professor Vasco Pereira da Silva como “uma das mais traumáticas do Direito Administrativo”. É fácil perceber o porquê desta classificação. O caso que despoletou toda a questão da Responsabilidade Civil administrativo chocou o mundo, e mesmo passado um século e meio, os contornos do mesmo ainda são susceptíveis de criar constrangimento. Falamos do “arrêt Blanco”.

            Muito resumidamente, o caso Blanco consistiu no atropelamento de uma criança (Agnés Blanco) de cinco anos, que ficou seriamente ferida (perdeu uma perna), por parte de um vagão pertencente a uma empresa detida pelo Estado. Os funcionários do vagão agiram, supostamente, com negligência e não viram a criança a brincar no passeio pelo que esta foi colhida. O pai de Agnés, Jean Blanco, exigiu imediatamente uma indemnização pelos danos sofridos. A resposta do tribunal de Bordéus originou uma grande disputa, pois este declarou-se incompetente para decidir por estar em causa uma empresa pública ou, por outras palavras, por se reconduzir a responsabilidade, em última instância, ao Estado.

            Esta era uma época em que a Administração ainda era vista como um poder soberano, que era imposto a todos e insusceptível de originar compensações (fórmula de Laferrière – “le propre de la souveraineté c’est de s’imposer à tous sans compensations”). O século XIX era dominado pelo pensamento “the king can do no wrong”. O Professor Freitas do Amaral admite até “o Estado era em regra irresponsável (…) nem sequer respondia indirectamente”, portanto compreende-se a injustiça de que os particulares eram por vezes alvo, tal como no caso Blanco.

            A verdade é que este caso Blanco abriu um importante precedente em matéria de responsabilidade da Administração. A Doutrina e mesmo o público em geral aperceberam-se da necessidade de considerar o Estado como uma entidade à qual se poderiam imputar danos e que poderia eventualmente ser condenado a indemnizar. Ao invés de uma mera responsabilidade pessoal dos funcionários, partia-se para uma responsabilidade solidária da Administração e seus funcionários, titulares de órgãos e agentes. A matéria conheceu vários avanços e recuos mas, mais tarde, já na primeira metade do século XX começava-se a admitir a responsabilidade do Estado. Estava ultrapassado o dogma “the king can do no wrong”. No entanto, fica visível o trauma sofrido pelo Direito Administrativo nesta matéria, sobretudo devido às concepções e pensamentos decorrentes do Estado absoluto.

            Avançando agora para Portugal, verificamos que em 1967, com o novo Código Civil, que veio substituir o já muito desactualizado (pelo menos nestas matérias de responsabilidade) Código de Seabra, veio-se regular a responsabilidade civil do estado por actos de gestão privada. As leis administrativas tratavam da responsabilidade da Administração “no domínio dos actos de gestão pública”. Havia uma dualidade de regimes, cuja raiz estava na distinção entre actos de gestão privada e actos de gestão pública. Com a mudança de regime e com a nova Constituição da República a situação alterou-se e urgia a necessidade de alterar o regime legal de 1967. Apareceram propostas, a mais relevante sendo a do XIV Governo mas que não vingou por destituição deste e dissolução do Parlamento.

            Porém, em 2007, foi aprovado pela lei nº 67/2007 o diploma do regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas (RCEEP). O Professor Vasco Pereira da Silva é extremamente crítico da actual distinção feita pela generalidade da Doutrina, principalmente pelo Professor Freitas do Amaral, entre operações materiais de gestão pública e gestão privada. O nosso Professor Regente refere ainda o caso do atropelamento, que na minha opinião ilustra na perfeição a irrelevância desta distinção para efeitos de apuramento de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.

            Como afirma, e bem, o Professor Vasco Pereira da Silva, não faz sentido que se estabeleçam diferentes regimes, remetendo para o Tribunal Administrativo casos de gestão pública e para o Tribunal comum casos de gestão privada. O Professor acrescenta ainda que as ordens no seio da Administração não têm obrigatoriamente de ser dadas “in loco”, e não faz sentido distinguir entre gestão privada e gestão pública apenas pela presença ou não do titular do órgão naquele momento específico.

            Outra crítica apontada pelo Professor Vasco Pereira da Silva direcciona-se precisamente ao legislador, que podia ter eliminado a distinção e unificado o regime da responsabilidade civil de todas as operações materiais. Em 2007, aquando da redacção da nova lei de responsabilidade civil do Estado, o legislador não foi claro e não unificou de forma explícita o regime. A distinção entre operações materiais de gestão pública e de gestão privada não é adequada porque vão sempre existir elementos que permitam apontar num ou noutro sentido e as divergências vão subsistir. A nova lei de 2007 ao usar a expressões “prorrogativas do poder público” (expressão traumática na opinião do Professor) e remeter o âmbito de aplicação da lei para os “acções (…) reguladas por disposições ou princípios do direito administrativo” (artigo 1º, nº 2 do RCEEP) permitiu que se continuasse a fazer a distinção entre gestão pública e gestão privada. Os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, por exemplo, retiram desta última expressão a referência a actos e operações materiais de gestão pública.

            Continuamos a assistir, deste modo, a uma dualidade de regimes, e a um constante recurso a uma distinção problemática, porque se defende (na linha dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa, André Salgado Matos e Freitas do Amaral) que se aplica o artigo 501º do Código Civil à “responsabilidade emergente do «exercício de actividades de gestão privada» ”, e que se aplica o RCEEP a responsabilidade civil “emergente do «exercício da função administrativa» ”, ou seja, a operações materiais de gestão pública.

            Concordo inteiramente com as críticas apontadas pelo Professor Vasco Pereira da Silva e penso que a distinção entre operações materiais de gestão pública e gestão privada está completamente ultrapassada e é desprovida de sentido. Não obstante o legislador não ter sido claro, é possível unificar o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e entidades públicas. O Professor Vasco Pereira da Silva encontra na expressão “princípios” do artigo 1º, nº2 do RCEEP, uma base para a unificação do regime de todas as operações materiais e de toda a responsabilidade civil da Administração.  

            Por último, é perceptível que o direito administrativo tem tido uma evolução gradual neste campo da responsabilidade civil. A infância traumática, influenciada pelo Estado absoluto, e a dualidade de regimes por força da distinção operada entre gestão pública e gestão privada contribuíram para tal. É por estas razões apontadas, e pela necessidade de unificar o regime que o Professor Vasco Pereira da Silva refere que o legislador necessita urgentemente de ter a psicanálise em dia e quando for feita uma nova lei, ter capacidade para debelar os traumas do direito administrativo em matéria de responsabilidade civil.


                                                             Francisco Felner
                                                             Sub Turma 3

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