A discussão em torno da possibilidade de degradação de formalidades essenciais em não-essenciais levanta problemas na ordem jurídica nacional. Diversos autores defendem a sua possibilidade, enquanto uma porção da doutrina encara tal como sendo algo totalmente impossível.
Assim sendo, atendendo à discussão em causa, iremos
analisar os motivos em causa em torno do problema.
Contudo, antes de qualquer referência de maior
relevo, há que atender à estrutura do acto administrativo, procedendo assim a
uma pequena introdução sobre o objecto do tema em causa, a jeito de realização
de conceitos introdutórios.
O Acto Administrativo compõe-se de quatro ordens de
elementos:
a)
Elementos Subjectivos: elemento que se
reparte entre o autor e o destinatário pondo, portanto, em destaque dois
sujeitos de direitos – a Administração Pública e um particular, ou mesmo duas
pessoas colectivas;
b)
Elementos Objectivos: conteúdo e objecto.
O centeúdo diz respeito à conduta voluntária do acto; o objecto do acto
consiste na realidade exterior que o acto incidir;
c)
Elementos Funcionais: este, por sua vez,
subdivide-se em outros 3 elementos – a causa, os motivos e o fim
a.
A Causa
– é a função jurídica social de cada tipo de acto administrativo;
b.
Os Motivos
– são todas as razões de agir que impelem o órgão da Administração a praticar
certo acto;
c.
Os Fins
– finalidade a prosseguir através da prática do acto.
Há que considerar os elementos formais patentes,
que são os de maior relevo em causa. De acordo com o artigo 122º do Código
do Procedimento Administrativo, todo o acto administrativo tem uma
determinada peculiaridade na sua exteriorização, ou mesmo na própria fase de
preparação. Formalidades são, portanto, todos os trâmites que a lei manda
observar com vista a garantir a correcta formação da decisão administrativa ou
o respeito pelos direitos subjectivos e interesses legítimos dos particulares.
Estas formalidades podem-se classificar de acordo
com 2 critérios base: essenciais e não essenciais. As essenciais, tal como o
nome indica, são as que não passíveis de serem dispensadas, em prol da própria
eficiência e validade do acto em causa; por sua vez, as não essenciais podem
facilmente ser dispensadas, sem darem azo a motivos de maior relevância.
O princípio geral nesta matéria é de que todas as
formalidades legalmente prescritas são essenciais, excepto: as que a própria
lei declare como dispensáveis, as que revestem natureza puramente interna e
aquelas que cuja preterição não obsta ao alcance dos objectivos visados.
Como principais formalidades prescritas no Código
do Procedimento Administrativo e da Constituíção da República Portuguesa:
1 – Audiência dos Interessados prévia à tomada de decisões
administrativas – art. 267º/5 CRP e art. 108º CPA;
2-
Fundamentação dos actos administrativos – art. 268º/3/2ª parte CRP e
124º e 125º CPA;
3-
Notificação dos actos – 268º/3/1ª parte CRP e 66º CPA
Vertente Positiva - a possibilidade de Degradação de
Formalidades Essenciais em Não Essenciais
Aquando desta teoria, fala-se igualmente no
conceito de “Princípio do Aproveitamento do Acto Administrativo”.
Ora, analisando melhor o preceito em causa, vemos
que este não tem qualquer expressão normativa; contudo, podemos retirar
pequenos afloramentos dos artigos 266º e 267º/1 da CRP. Estes remetem-nos
para os seguintes pressupostos: o evitar da burocratização, o evitar do
reinício do procedimento administrativo (sendo uma poupança de tempo e de
custos para a Administração e para o particular) e para a presunção da
prevalência do interesse público, que se pauta por estigma de racionalidade e
de celeridade.
Assim sendo, deste preceito constitucional, podemos
retirar a existência de princípios de Boa –Fé e de desburocratização, concretizados
igualmente no Código de Procedimento Administrativo.
No seu artigo 6ºA, o CPA, admite a boa-fé, sendo que a
invalidade do acto pode ser encarada como uma inutilidade, dando-se um prejuízo
do particular e da própria Administração (dado o reinício do procedimento,
havendo um maior gasto de recursos); a desburocratização vem enfatizada no art.
10º do mesmo código, onde se estipula uma instrumentalidade de formas (sendo
que o procedimento é encarado como um mero instrumento em relação ao direito
material). Há aqui, novamente, o pressuposto da existência de um princípio de
economia processual, que se baseia na dispensa de certos actos relativos ao
decorrer do procedimento, que não irão pôr em causa o fim visado pelo acto.
Há ainda que ver que, numa perspectiva geral, a
Economia Processual liga-se intrinsecamente ao princípio da prossecução do
interesse público e dos interesses subjectivos dos particulares (artigos 4º
CPA e 266º da CRP).
Mas tal preceito de Economia Processual não é
meramente um exemplo de Escola, mas tem igualmente aplicação prática,
nomeadamente no âmbito jurisprudencial. Tomando como exemplo o Acórdão do
Supremo Tribunal Administrativo (07/02/2002), relativo à economia de actos
públicos, é-nos dado relevo à adequação, à necessidade e ao equilíbrio; tudo
isto para fazer jus à economia de meios patente.
Há ainda que referir, em favor desta tese, que houve igualmente casos jurisprudenciais em que houve aproveitamento de actos nulos (o desvalor mais forte), tal como estipulado no acórdão do STA de 2007 (sobre um parecer emitido posteriormente ao acto impugnável; contudo preenchendo a finalidade da norma, foi aceite).
Há ainda que referir, em favor desta tese, que houve igualmente casos jurisprudenciais em que houve aproveitamento de actos nulos (o desvalor mais forte), tal como estipulado no acórdão do STA de 2007 (sobre um parecer emitido posteriormente ao acto impugnável; contudo preenchendo a finalidade da norma, foi aceite).
Há ainda que denotar que existem outros
aproveitamentos relevantes, como o que se encontra no art. 21º CPA, no
que diz respeito à inobservância de disposições sobre a convocação de uma
reunião (onde se considera sanada a ilegalidade se todos os órgãos comparecerem
à reunião e não obstarem à sua realização); ao art. 283º/4 do Código de
Contratos Públicos, onde se estipula que a anulação de contratos é afastada
quando o vício não implique uma modificação subjectiva do contrato.
Assim sendo, qual é então o problema em torno do
princípio do aproveitamento do acto?
O resultado final foi atingido (fim), mas não foram
prosseguidas todas as formalidades necessárias para tal (meios). O STA tem
vindo a pronunciar-se sobre a Teoria dos Vícios Inoperantes, isto é, se
o novo acto a emitir tiver o mesmo conteúdo que o acto impugnado, não fará
sentido pronunciar a anulação de um acto viciado; citando o STA: “A anulação será tida como uma inutilidade e
uma perda de tempo e recursos”.
Como opera o
aproveitamento do acto?
Para haver aproveitamento do acto, temos de estar
perante o desvalor da anulabilidade (art. 135º CPA); não fará sentido
reduzir/ aproveitar um acto com um desvalor mais perigoso. Isto é, o acto
continua a ser válido, mas meramente irregular.
Teremos igualmente de estar perante actos válidos e
vinculados, ou seja, quando não há outra alternativa possível que possa ser
operada através da discricionariedade.
Atendendo, em primeiro lugar, ao critério da
anulabilidade. Por um lado, o entendimento da respectiva sanação (conforme
defendida pelos professores Marcello Caetano e Freitas do Amaral), o
acto sana-se pelo simples decurso do tempo e passa a equiparar-se a um acto
válido desde a sua prática, passando a ser-lhe aplicável o regime jurídico
previsto no artigo 140.º sobre a “revogação de actos válidos”.
Por outro lado, temos o entendimento de que o mero
decurso do prazo não “valida” o acto anulável, ou seja, que simplesmente
impossibilita a respectiva impugnação judicial (defendido, pe, pelos professores
Vieira de Andrade e Vasco Pereira da Silva). No entanto, tal não obsta à
apreciação da ilegalidade para efeitos de responsabilidade civil, e outros
casos legalmente previstos (artigo 38.º do CPTA).
Sentença que
aproveita um acto anulável
O acto impugnado é sanado através da aplicação do
Princípio do Aproveitamento? E se sim, com efeitos ex tunc (desde início) ou
com efeitos ex nunc (para o futuro)? Ou mantém-se inválido, quanto à sua
génese, mas válido quanto à respectiva produção de efeitos? A sentença não sana
o acto impugnado e não procede à expurgação da parte viciada: o acto permanece
tal e qual aquando do momento da sua prática. Na esteira de Afonso Queiró,
ainda que no contexto de aproveitamento de um acto discricionário pelo
Tribunal, o acto que se mantém de pé é o acto impugnado e não um acto do
tribunal.
Ou seja, a invalidade do acto subsiste, mas a
sentença que dita o aproveitamento do acto, confere-lhe “imunidade” ao retirar
efeitos invalidantes do vício nesse acto (é neste aspecto que estabelecemos a
comparação com os efeitos do decurso do prazo legal para revogação no caso do
acto anulável). Acresce que o aproveitamento do acto implica que tenha efeitos
retroactivos, ou seja, irá operar desde o momento da sua prática, porque é
nesse momento que é aferida a sua validade.
Face ao que antecede, conclui-se que a sentença
reconhece o acto impugnado como válido e, consequentemente, a sua aptidão para
produzir efeitos jurídicos válidos.
Da
degradação de formalidades essenciais em não essenciais
Segundo a jurisprudência nacional, apenas quando se
conclua que o acto inquinado do vício formal alberga a única solução
juridicamente possível (redução a zero da discricionariedade), ou a solução
tenha sido atingida por outra via, é que a formalidade essencial se degrada em
formalidade não essencial, permitindo, assim o aproveitamento do acto.
Por exemplo, quando resulte comprovadamente que o
interessado consultou o processo em causa e/ou intervém, quer por sua
iniciativa, quer por solicitação oficiosa, o procedimento através da junção de elementos/documentos
(caso de omissão da audiência prévia).
A possibilidade de degradar uma formalidade
essencial em não essencial é posterior à qualificação do acto em causa: se é
vinculado ou discricionário. Só depois de tal aferição, é que se poderá considerar
a eventual degradação da formalidade preterida em não essencial.
Em termos teóricos, temos a opinião do professor
Vieira de Andrade, que estipula que as formalidades são meramente
instrumentais, sendo igualmente adepto de um princípio de Economia Processual. Aqui
encontra-se a distinção, elencada pelo autor, entre a Tese Finalista e a
Tese Substancialista. A primeira diz respeito, em termos muito sucintos,
a que a anulação não deva ser tida em conta se se comprovar que no acto
concreto os vícios não eram essenciais e que o fim já teria sido visado. A Tese
Substancialista admite o carácter instrumental das formalidades em relação fim
material e último da norma legal.
Vertente Negativa - a Negação da
Possibilidade de Degradação de Formalidades
O acto inválido só será aproveitável quando a forma
de invalidade seja a anulabilidade, como resulta do art.137º/1 do CPA – o
que impede o aproveitamento de actos nulos ou inexistentes. Assim sendo,
restringe-se o âmbito de aplicação do Principio do aproveitamento do acto
administrativo apenas aos actos anuláveis (arts. 135º e 136º CPA).
Para determinar o aproveitamento do acto
administrativo sub judice, a Jurisprudência Portuguesa tem exigido que
este contenha a única solução jurídica possível, isto é, que seja seguro que o
novo acto a emitir, isento de vício, não poderá deixar de ter o mesmo conteúdo
decisório.
A tal deve acrescentar-se que a Jurisprudência tem
adoptado um critério “funcionalista ou finalista”, tal como já designado
anteriormente, segundo o qual o acto viciado só não deve ser anulado se se
comprovar que, no caso concreto, os fins que o preceito violado visavam
proteger foram igualmente alcançados.
No caso de invalidade por falta de fundamentação,
se for desrespeitado um dever de fundamentar um acto, mas o destinatário puder conhecer
a sua fundamentação de qualquer maneira, deve esse acto ser aproveitado.
No
entanto, o referido critério deve ser restringido, devido ao argumento que tem
sido preponderante entre a jurisprudência: é determinante que o percurso
intelectual e a respectiva ponderação do autor do acto para chegar ao resultado
em causa estejam claramente expressos no acto administrativo em causa. Ou seja,
não chega que o destinatário do acto tenha tido conhecimento da fundamentação
por consulta do processo administrativo ou por qualquer outra intervenção do
procedimento.
É de realçar que a fundamentação dos actos
administrativos tem consagração constitucional (art.268º/4 CRP), devendo
os tribunais ter especial cuidado no aproveitamento dos actos viciados por
falta de fundamentação.
Sem prejuízo do que foi dito, o aproveitamento dos
actos administrativos é feito casuisticamente procedendo-se a um confronto
entre a Economia Processual, consagrada pelo Principio do Aproveitamento do
Acto Administrativo, e o Principio da Legalidade. Neste confronto, deve
atribuir-se maior peso ao segundo.
Não faria sentido sacrificar interesses dos
particulares em nome da economia processual, quando essa não seja a única
solução possível.
Como foi acima referido, os tribunais só devem
aproveitar o acto viciado quando o conteúdo do acto seja o único possível no
caso concreto, pois se assim não fosse estes estariam de facto a administrar.
Neste sentido, é de referir que a Jurisprudência tem sempre respeitado este
limite, nunca tendo decidido em sentido contrario.
Conclusões gerais
Podemos admitir que, actualmente, a doutrina
diverge quanto à possibilidade de aceitação degradação de uma formalidade
essencial em não essencial em nome do acto administrativo e do seu
aproveitamento.
Como pontos essenciais da vertente positiva, temos fundamentalmente
a Economia Processual, mantendo-se igualmente os resultados visados, havendo
uma poupança de recursos e meios, tanto para a Administração, como para o
particular visado.
Na vertente negativa, por sua vez, temos como
pilares o princípio da legalidade e da prossecução do primitivo interesse do
particular, que não poderá nunca ser posto em causa aquando uma divergência
entre um meio processual e um direito subjectivo ou um interesse reflexo.
Ana Sofia Ribeiro
António
Branco Cardoso
António Gonçalves
Akémia
Akémia
José Alves
Patrícia Silva
Tomás Silva
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