A discricionariedade consiste numa liberdade conferida por lei à administração para que esta possa escolher entre várias alternativas de actuação juridicamente admissíveis. Tal liberdade pode dizer respeito à escolha entre agir e não agir (discricionariedade de acção), à escolha entre duas ou mais possibilidades de actuação predefinidas por lei (discricionariedade de escolha) ou à criação da actuação concreta dentro dos limites jurídicos aplicáveis (discricionariedade criativa). É esta a definição que o professor Marcelo Rebelo de Sousa nos dá.
Não
existem dúvidas da existência de discricionariedade nos casos em cima
referidos.
No entanto, pode-se colocar a seguinte questão: a administração
também dispõe de poderes discricionários naquelas situações em que a lei
utiliza conceitos indeterminados?
As
normas jurídicas têm tradução textual, e por isso estão sujeitas às
contingências da linguagem. Uma delas é a indeterminação vocabular: todas as
palavras comportam alguma incerteza semântica. A doutrina fala então em
conceitos indeterminados.
O
grau de indeterminação dos conceitos varia muitíssimo. No sentido amplo,
conceitos indeterminados são aqueles cujo reconhecimento intervém uma certa
dose de subjectividade do intérprete.
Mais
concretamente, o problema coloca-se em saber se a interpretação e aplicação
pelo administrador destes conceitos são feitas:
a) no uso de um poder
discricionário;
b) com uma certa
margem de livre apreciação;
c)
no puro exercício de um poder vinculado.
a)
A primeira teoria (no uso de um poder discricionário)
referida é uma das teorias mais antigas, contudo actualmente perdeu quase todo
o apoio e está quase completamente posta de lado entre nós.
A ideia fundamental desta teoria é a de que os conceitos indeterminados são
empregues intencionalmente pelo Legislador com o objectivo de atribuir à autoridade
administrativa um poder de livre decisão para que esta possa reagir
atempadamente e da melhor forma às circunstâncias imponderáveis que
caracterizam a vida administrativa. Só face ao caso concreto pode a administração encontrar a medida mais adequada à resolução
desses problemas. O Legislador não pode prever todos os imponderáveis da vida
administrativa, não tem o conhecimento real de cada circunstância concreta nem
conhece quais os meios de que a administração dispõe para resolver as
diferentes situações que surgem no dia-a-dia. Só um administrador livre pode
encontrar a medida ideal. Seria
precisamente para deixar à administração liberdade de manobra que o legislador
recorria ao emprego destas expressões altamente vagas.
Não
concordo com esta posição, pois não é certo que o emprego pelo Legislador de
conceitos altamente vagos seja um emprego intencional. Claro
que o pode ser algumas vezes, mas com certeza que muitas vezes o
Legislador recorre a conceitos para se manter fiel a uma linguagem jurídica
tradicional. Em segundo lugar, é bem diferente aplicar intencionalmente um
conceito ou aplicá-lo com a intenção de atribuir um poder discricionário. A
intenção com que o Legislador emprega os conceitos só pode ser interpretada no
contexto em que ele os empregou, pelo que eles nunca devem ser desprendidos da
norma de que fazem parte.
b)
A segunda teoria (com uma
certa margem de livre apreciação) surgiu na Alemanha,
reconhece que alguns dos conceitos indeterminados atribuem
ao seu intérprete aplicador um espaço de livre apreciação, para que ele possa
encontrar, no momento exacto, a medida certa
para responder à situação de facto concreta. Esta teoria não diz respeito a
todos os conceitos legais altamente indeterminados, mas apenas a alguns deles,
que pela sua natureza atribuiriam um espaço de livre apreciação.
Esta doutrina conhece várias nuances. As duas
mais importantes são a que coloca a margem de livre apreciação no campo da
previsão dos factos e a que a coloca no campo dos efeitos de direito da norma. Na primeira doutrina reconhece-se que na zona da margem de livre apreciação
não pode existir controlo jurisdicional, embora esta
impossibilidade não resulte da vontade do
legislador, mas sim da impossibilidade prática de controlar, a posteriori,
decisões altamente subjectivas que pertencem à competência do administrador. A
administração tem a responsabilidade pela sua actividade e por isso deve-lhe ser reconhecida um privilégio na sua
decisão. Já na doutrina que coloca a margem de livre apreciação no campo dos efeitos
da norma resulta que a interpretação dos conceitos indeterminados não pode ser
controlada integralmente pelos tribunais administrativos por aquela
corresponder à voluntária atribuição pelo Legislador. O tribunal administrativo apenas pode controlar a
interpretação e aplicação destes conceitos nos seus contornos exteriores, pois
o núcleo destes conceitos faz parte da actividade administrativa, núcleo esse
tomado como zona de verdadeira discricionariedade administrativa
Entre nós, como defensor da doutrina da margem de livre apreciação, temos o professor Marcelo Rebelo de Sousa. Primeiro que tudo o professor começa por dizer que a margem de livre
apreciação consiste num espaço de liberdade da administração na apreciação de
situações de facto que dizem respeito aos pressupostos das suas decisões. Ou
seja, diz respeito essencialmente à previsão das normas jurídico-administrativas.
O professor defende que uma das situações em que a
margem de livre apreciação pode ocorrer é no caso de conceitos indeterminados.
Não é possível sustentar que a utilização de quaisquer conceitos indeterminados
nas previsões das normas tem sempre como consequência a margem de livre
apreciação administrativa. Se assim fosse, a
actividade da administração seria controlada pelos tribunais apenas numa
extensão exígua. Contudo há situações em que os conceitos indeterminados levam
a que não se possa considerar existir apenas uma decisão correcta para a
decisão de um caso concreto, é nestes casos que se justifica a existência de
margem de livre apreciação.
O difícil é exactamente saber quais as situações em que a
indeterminação dá ou não origem a margem de livre decisão. O professor Marcelo Rebelo
de Sousa defende que a identificação das situações em que a utilização legal de
conceitos indeterminados confere margem de livre apreciação à administração
deve ter em conta os fundamentos substanciais da margem de livre decisão em
geral, assentando em três aspectos:
1.
O apuramento da razão subjacente à expressão
do sentido normativo através de conceitos indeterminados. A margem de livre apreciação não existe quando a sua
utilização decorre apenas de limites da
própria linguagem e sim quando decorra dos limites impostos à função
legislativa pela impossibilidade ou inconveniência da definição exaustiva
antecipada dos pressupostos normativos do exercício da competência;
2.
A formulação de um raciocínio funcionalmente
adequado à luz do princípio da separação de poderes
que impõe a margem de livre apreciação apenas nos casos em que o controlo
jurisdicional integral da concretização casuística dos conceitos indeterminados
implique a usurpação do poder administrativo.
3.
A ponderação em concreto entre o princípio da
separação de poderes e os direitos fundamentais dos particulares eventualmente
lesados pela decisão administrativa, a prevalência dos últimos sobre o primeiro
ditará a necessidade de controlo jurisdicional e consequentemente a ausência de
margem de livre apreciação.
c)
Quanto à última doutrina o que estaria em
causa era descobrir, com o auxílio de pistas fornecidas pela
própria norma, o único sentido possível da
lei e não tornar relevante a vontade da administração.
Neste caso a administração encontrar-se-ia
vinculada e obrigada a descobrir qual o sentido da lei e qual seria a vontade
do legislador, não dispunha de poder discricionário. Havendo vinculação, há
também controlo judicial, ou seja, o tribunal pode posteriormente proceder à determinação do
conceito e é esta que prevalece. Já foi a
doutrina defendida pelo professor Freitas do
Amaral.
Parece-me
que a melhor orientação a seguir será a do professor Marcelo
Rebelo de Sousa.
Deve-se olhar caso a caso e ter em
conta os aspectos a que o professor se refere. Não há uma solução única, por
isso o que temos de saber,
olhando para cada caso, é quando é que a indeterminação dá ou não origem à
margem de livre decisão. Nos casos que não dê, pois os conceitos indeterminados
não têm todos a mesma feição, a solução é recorrer-se à interpretação.
Patrícia dos Santos