por Nuno Miguel Igreja Matos
1. Introdução; 2. A probatio diabolica; 3. O trauma; 4.
Preconizando soluções; 5. Conclusão.
1 - O
desvio de poder é um vício funcional típico dos actos administrativos
praticados ao abrigo de uma margem de livre decisão e que entende a preterição
de requisitos legais relativos ao fim e motivo do acto em causa – ou seja, uma
discrepância entre o fim legal e o fim efectivamente prosseguido, designado fim
real.
Na linha dos ensinamentos do Prof.
Freitas do Amaral e do consagrado
no já revogado art. 19º da LOSTA, na averiguação da existência deste vício
haverá que proceder a uma operação tripartida: em primeiro lugar, apurar o fim
visado pela lei que confere o poder discricionário ao órgão administrativo – o
fim legal; segundamente, apurar o motivo
principalmente determinante para a prática do acto – o fim real – e,
finalmente, demonstrar que este motivo não coincide com o fim legal, sendo aqui
indiferente se o desvio se baseou numa errónea interpretação da lei (erro de
direito) ou na prossecução voluntária de um fim contrário à lei (má fé), ainda
orientado para um outro interesse público ou, mais grave, para um interesse
privado.
Assim,
seria desejável concluir já que o desvio de poder se assume hodiernamente como
um instituto ímpar em sede de combate à corrupção administrativa, desempenhando
um papel de salvaguarda dos princípios que orientam a Administração Pública,
sua relação com os particulares e prossecução do interesse público. Contudo,
tais considerações, embora traduzam a teleologia subjacente a este vício e
certamente preencham o seu objectivo teórico, não encontram qualquer amparo na
actual prática administrativa, particularmente no âmbito do contencioso
administrativo. Bem pelo contrário, a matéria do desvio de poder está hoje em
desertificação, tanto jurisprudencial como doutrinariamente, e a explicação é
consensual: os inultrapassáveis obstáculos probatórios exigidos para a anulação
do acto.
O presente texto propõe-se,
portanto, a analisar as causas e consequências deste trauma que paira sobre o
vício de desvio de poder, tendo a preocupação de apreciar se esta sobrecarga
probatória é compatível com o direito constitucionalmente garantido a uma
efectiva tutela judicial dos particulares e com o princípio da proporcionalidade,
partindo do pressuposto de que a Administração, mesmo ao abrigo de uma margem
de livre decisão, está ainda vinculada a certos limites imanentes, como o sejam
o princípio da legalidade, imparcialidade e proporcionalidade.
2 - Consultando
a jurisprudência administrativa salta à vista a escassez de decisões judiciais
sobre este vício e que dentro desse universo reduzido, só muito
excepcionalmente têm os actos impugnados sido, efectivamente, anulados. A “impossibilidade”
probatória deste fundamento é já de reconhecimento resignado na doutrina (por
exemplo, Marcelo Rebelo de Sousa e
Mário Aroso de Almeida, entre
outros), chegando-se assim ao actual cenário de desinteresse jurídico em
prestar atenção científica ou académica ao desvio de poder.
Mergulhando
na questão da probatio diabolica,
para que se possa concluir pela vício em causa é necessário não apenas
demonstrar que o fim real foi distinto do fim legal, mas provar a existência de
um nexo de causalidade entre o motivo determinante e o fim efectivamente
prosseguido, ou seja, tornar evidente que sem esse motivo, o acto teria ido
noutra direcção.
Daqui decorre que o desvio de
poder não se afere a partir do resultado do acto, mas antes numa análise dos
motivos que conduziram a esse resultado. Ora, esta construção vai dar origem a
mais um obstáculo, relacionado com a sindicabilidade judicial, uma vez que os
motivos subjacentes à prática de um acto administrativo só poderão ser
sindicados se não se enquadrarem no âmbito discricionário da norma habilitante
ou, numa outra construção, se forem reconduzíveis à respectiva margem de
certeza negativa. Caso assim não se suceda, o poder judicial estaria a
ingerir-se no mérito da actividade administrativa, algo que evidentemente
arrepia aos valores do sistema. Em suma, a actividade probatória apresentada
pelo impugnante tem que ser apta a i) isolar o motivo que conduziu à prática do
acto – nexo de causalidade entre o motivo determinante e a decisão, e ainda ii)
demonstrar que este se enquadra na zona discricionária de certeza negativa ou
fora da margem de livre decisão. Indo ainda mais longe para ilustrar as
implicações deste regime, se, por exemplo, a impugnação visar um acto praticado
por um órgão colegial, seria necessário ao interessado aferir dos motivos de
cada um dos membros e demonstrar que a soma dos membros “desviantes” contribuiu
de forma directa para o resultado da votação – uma matéria tão técnica que a
própria doutrina se coíbe de explorar.
Como se não bastasse, se a esta
tarefa hercúlea se acrescentar a técnica de embuste em que assentam os casos de
desvio doloso de poder e os cuidados que o agente administrativo tem em
camuflar os motivos determinantes, chegamos por fim à certeza de que estamos
perante uma prova diabólica.
3 - Do
discorrido cabe referir que o problema não é tanto o da exigência da actividade
probatória per se, mas sobretudo
constatar que toda essa oneração recai exclusivamente sobre o impugnante, sem
se admitir presunções judiciais, mesmo perante a demonstração de indícios, que
aliviem a carga probatória do interessado. Não admira, porquanto, a cadência do
vício. Consequentemente, acaba por se perpetuar que a Administração exerça a
margem de livre decisão conferida pela norma habilitante com maior impunidade
do que se este vício fosse mais facilmente sindicável e que, em última
instância, ocorram lesões aos direitos e interesses dos particulares.
Parece assim evidente que esta
desproporcionalidade na apresentação probatória, ao afastar os interessados do
recurso ao fundamento de desvio de poder, afecta directamente o direito à
tutela judicial efectiva dos administrados (268º CRP), seja na defesa dos seus
direitos subjectivos ou na promoção de um controlo de legalidade (266º CRP).
Neste sentido pronuncia-se ainda Elizabeth
Fernandez, alegando que o direito à tutela judicial efectiva inclui
ainda o respeito, em sede de actividade probatória, pelo princípio da
proporcionalidade lato sensu, até
porque “de nada adianta atribuir a alguém
um direito (no caso o da anulação de um acto por desvio de poder) se as regras do ónus da prova e o grau de
convicção exigido às partes criarem obstáculos reais ao tribunal na busca pela
verdade”. Nas palavras de Paulo Otero,
dá-se aqui algo de semelhante a um “fenómeno
erosivo da vinculação da Administração à legalidade” ou ainda “um enfraquecimento vinculativo da legalidade”.
4 - O
trauma diagnosticado poderá, todavia, ter cura.
Numa simples incursão pelo Direito
Comparado são múltiplas as soluções que poderiam ser adoptadas, desde permitir
a emergência de presunções judiciais perante determinados indícios (como ocorre
no ordenamento espanhol) à promoção prima
facie de uma inversão do ónus da prova, ou, menos radical, de uma
redistribuição mais equilibrada pelas partes envolvidas para não onerar
abusivamente o impugnante, numa teoria que remonta já a Jeremy Bentham e que poderia ser baseada, no nosso
ordenamento, no princípio da colaboração (266º/3 e 519º/1 CPC, aplicáveis ao
CPTA).
Numa outra perspectiva, seguindo Jorge W. Peyrano, seria ainda
interessante discutir um sistema de distribuição autónoma e independente da
carga probatória, particularmente em situações em que as regras vigentes tornem
a prova dos factos impossíveis, ou sejam perante cenários de prova diabólica. Nos
Estados Unidos, por exemplo, a distribuição do ónus da prova é fixada caso a
caso, pelo juíz; no ordenamento alemão, por outro lado, tem-se procurado
resolver a questão apelando a uma nova teoria (Anscheinbeweis), que, muito linearmente, admite que perante certos
factos considerados típicos pela sua frequência ocorra uma inversão do ónus da
prova.
5 - Em
conclusão, o vício de desvio de poder está hoje em extinção no ordenamento
português devido à excessiva carga probatória exigida e consequente problema de
sindicabilidade judicial, situação que põe em causa o direito
constitucionalmente previsto a uma tutela judicial efectiva e o princípio da
proporcionalidade, deixando os interessados e os tribunais quase que
dependentes de uma confissão para se conseguir a anulação do acto. Citando o
Prof. Paulo Otero, “se o funcionamento do contencioso
administrativo se mostrar insuficientemente garantístico do sancionamento de
condutas administrativas desconformes com a legalidade, decididamente que a
vinculação da Administração à juridicidade será debilitada e imperfeita”;
logo, reflectir sobre esta matéria, apontando-lhe falhas e preconizando
soluções (recorrendo, como supra-referido e por exemplo, ao Direito Comparado)
é desde logo apelar a uma maior eficácia do sistema e, sobretudo, ambicionar
maior confiança dos particulares nos tribunais e na Administração.
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