segunda-feira, 22 de abril de 2013

O trauma do desvio de poder e respectiva probatio diabolica

por Nuno Miguel Igreja Matos

1. Introdução; 2. A probatio diabolica; 3. O trauma; 4. Preconizando soluções; 5. Conclusão.

1 -       O desvio de poder é um vício funcional típico dos actos administrativos praticados ao abrigo de uma margem de livre decisão e que entende a preterição de requisitos legais relativos ao fim e motivo do acto em causa – ou seja, uma discrepância entre o fim legal e o fim efectivamente prosseguido, designado fim real.
Na linha dos ensinamentos do Prof. Freitas do Amaral e do consagrado no já revogado art. 19º da LOSTA, na averiguação da existência deste vício haverá que proceder a uma operação tripartida: em primeiro lugar, apurar o fim visado pela lei que confere o poder discricionário ao órgão administrativo – o fim legal; segundamente, apurar o motivo principalmente determinante para a prática do acto – o fim real – e, finalmente, demonstrar que este motivo não coincide com o fim legal, sendo aqui indiferente se o desvio se baseou numa errónea interpretação da lei (erro de direito) ou na prossecução voluntária de um fim contrário à lei (má fé), ainda orientado para um outro interesse público ou, mais grave, para um interesse privado.
                Assim, seria desejável concluir já que o desvio de poder se assume hodiernamente como um instituto ímpar em sede de combate à corrupção administrativa, desempenhando um papel de salvaguarda dos princípios que orientam a Administração Pública, sua relação com os particulares e prossecução do interesse público. Contudo, tais considerações, embora traduzam a teleologia subjacente a este vício e certamente preencham o seu objectivo teórico, não encontram qualquer amparo na actual prática administrativa, particularmente no âmbito do contencioso administrativo. Bem pelo contrário, a matéria do desvio de poder está hoje em desertificação, tanto jurisprudencial como doutrinariamente, e a explicação é consensual: os inultrapassáveis obstáculos probatórios exigidos para a anulação do acto.
O presente texto propõe-se, portanto, a analisar as causas e consequências deste trauma que paira sobre o vício de desvio de poder, tendo a preocupação de apreciar se esta sobrecarga probatória é compatível com o direito constitucionalmente garantido a uma efectiva tutela judicial dos particulares e com o princípio da proporcionalidade, partindo do pressuposto de que a Administração, mesmo ao abrigo de uma margem de livre decisão, está ainda vinculada a certos limites imanentes, como o sejam o princípio da legalidade, imparcialidade e proporcionalidade.
               
2 -           Consultando a jurisprudência administrativa salta à vista a escassez de decisões judiciais sobre este vício e que dentro desse universo reduzido, só muito excepcionalmente têm os actos impugnados sido, efectivamente, anulados. A “impossibilidade” probatória deste fundamento é já de reconhecimento resignado na doutrina (por exemplo, Marcelo Rebelo de Sousa e Mário Aroso de Almeida, entre outros), chegando-se assim ao actual cenário de desinteresse jurídico em prestar atenção científica ou académica ao desvio de poder.
                Mergulhando na questão da probatio diabolica, para que se possa concluir pela vício em causa é necessário não apenas demonstrar que o fim real foi distinto do fim legal, mas provar a existência de um nexo de causalidade entre o motivo determinante e o fim efectivamente prosseguido, ou seja, tornar evidente que sem esse motivo, o acto teria ido noutra direcção.
Daqui decorre que o desvio de poder não se afere a partir do resultado do acto, mas antes numa análise dos motivos que conduziram a esse resultado. Ora, esta construção vai dar origem a mais um obstáculo, relacionado com a sindicabilidade judicial, uma vez que os motivos subjacentes à prática de um acto administrativo só poderão ser sindicados se não se enquadrarem no âmbito discricionário da norma habilitante ou, numa outra construção, se forem reconduzíveis à respectiva margem de certeza negativa. Caso assim não se suceda, o poder judicial estaria a ingerir-se no mérito da actividade administrativa, algo que evidentemente arrepia aos valores do sistema. Em suma, a actividade probatória apresentada pelo impugnante tem que ser apta a i) isolar o motivo que conduziu à prática do acto – nexo de causalidade entre o motivo determinante e a decisão, e ainda ii) demonstrar que este se enquadra na zona discricionária de certeza negativa ou fora da margem de livre decisão. Indo ainda mais longe para ilustrar as implicações deste regime, se, por exemplo, a impugnação visar um acto praticado por um órgão colegial, seria necessário ao interessado aferir dos motivos de cada um dos membros e demonstrar que a soma dos membros “desviantes” contribuiu de forma directa para o resultado da votação – uma matéria tão técnica que a própria doutrina se coíbe de explorar.
Como se não bastasse, se a esta tarefa hercúlea se acrescentar a técnica de embuste em que assentam os casos de desvio doloso de poder e os cuidados que o agente administrativo tem em camuflar os motivos determinantes, chegamos por fim à certeza de que estamos perante uma prova diabólica.

3 -           Do discorrido cabe referir que o problema não é tanto o da exigência da actividade probatória per se, mas sobretudo constatar que toda essa oneração recai exclusivamente sobre o impugnante, sem se admitir presunções judiciais, mesmo perante a demonstração de indícios, que aliviem a carga probatória do interessado. Não admira, porquanto, a cadência do vício. Consequentemente, acaba por se perpetuar que a Administração exerça a margem de livre decisão conferida pela norma habilitante com maior impunidade do que se este vício fosse mais facilmente sindicável e que, em última instância, ocorram lesões aos direitos e interesses dos particulares.  
Parece assim evidente que esta desproporcionalidade na apresentação probatória, ao afastar os interessados do recurso ao fundamento de desvio de poder, afecta directamente o direito à tutela judicial efectiva dos administrados (268º CRP), seja na defesa dos seus direitos subjectivos ou na promoção de um controlo de legalidade (266º CRP). Neste sentido pronuncia-se ainda Elizabeth Fernandez, alegando que o direito à tutela judicial efectiva inclui ainda o respeito, em sede de actividade probatória, pelo princípio da proporcionalidade lato sensu, até porque “de nada adianta atribuir a alguém um direito (no caso o da anulação de um acto por desvio de poder) se as regras do ónus da prova e o grau de convicção exigido às partes criarem obstáculos reais ao tribunal na busca pela verdade”. Nas palavras de Paulo Otero, dá-se aqui algo de semelhante a um “fenómeno erosivo da vinculação da Administração à legalidade” ou ainda “um enfraquecimento vinculativo da legalidade”.

4 -       O trauma diagnosticado poderá, todavia, ter cura.
Numa simples incursão pelo Direito Comparado são múltiplas as soluções que poderiam ser adoptadas, desde permitir a emergência de presunções judiciais perante determinados indícios (como ocorre no ordenamento espanhol) à promoção prima facie de uma inversão do ónus da prova, ou, menos radical, de uma redistribuição mais equilibrada pelas partes envolvidas para não onerar abusivamente o impugnante, numa teoria que remonta já a Jeremy Bentham e que poderia ser baseada, no nosso ordenamento, no princípio da colaboração (266º/3 e 519º/1 CPC, aplicáveis ao CPTA).
Numa outra perspectiva, seguindo Jorge W. Peyrano, seria ainda interessante discutir um sistema de distribuição autónoma e independente da carga probatória, particularmente em situações em que as regras vigentes tornem a prova dos factos impossíveis, ou sejam perante cenários de prova diabólica. Nos Estados Unidos, por exemplo, a distribuição do ónus da prova é fixada caso a caso, pelo juíz; no ordenamento alemão, por outro lado, tem-se procurado resolver a questão apelando a uma nova teoria (Anscheinbeweis), que, muito linearmente, admite que perante certos factos considerados típicos pela sua frequência ocorra uma inversão do ónus da prova.

5 -           Em conclusão, o vício de desvio de poder está hoje em extinção no ordenamento português devido à excessiva carga probatória exigida e consequente problema de sindicabilidade judicial, situação que põe em causa o direito constitucionalmente previsto a uma tutela judicial efectiva e o princípio da proporcionalidade, deixando os interessados e os tribunais quase que dependentes de uma confissão para se conseguir a anulação do acto. Citando o Prof. Paulo Otero, “se o funcionamento do contencioso administrativo se mostrar insuficientemente garantístico do sancionamento de condutas administrativas desconformes com a legalidade, decididamente que a vinculação da Administração à juridicidade será debilitada e imperfeita”; logo, reflectir sobre esta matéria, apontando-lhe falhas e preconizando soluções (recorrendo, como supra-referido e por exemplo, ao Direito Comparado) é desde logo apelar a uma maior eficácia do sistema e, sobretudo, ambicionar maior confiança dos particulares nos tribunais e na Administração.


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