domingo, 28 de abril de 2013

Discricionariedade Administrativa: o Hard Case do princípio da justiça.



A obra do Professor David Duarte sobre a discricionariedade administrativa proporciona uma viagem interessante sobre o tema, que culmina com uma perspectiva singular acerca do princípio da justiça, e da aplicabilidade autónoma do mesmo enquanto limite à discricionariedade.

Antes, porém, de partir para o ponto nevrálgico do post , é apropriado proceder a um enquadramento da temática da discricionariedade.
Desde logo, começar por dizer que a Discricionariedade Administrativa se trata de um resultado normativo, longe, portanto, de constituir um exercício livre da função administrativa que, ao contrário, estará sempre normativamente habilitada. E está-lo-á para proceder a uma escolha, nomeadamente a uma escolha entre alternativas, naquele que é o cerne da discricionariedade, isto é, uma situação na qual o órgão competente, dentro do quadro de alternativas presente, deve conformar o conteúdo do acto jurídico a praticar de acordo com uma opção sua. Isto dito, percebe-se com facilidade que a discricionariedade se encontra necessariamente balizada. Não obstante, apesar da existência desses mesmos amparos normativos, é ao órgão administrativo que cabe decidir, de forma autónoma, os efeitos jurídicos a criar. A discricionariedade administrativa constitui, deste modo, uma zona de exercício da função administrativa em que os tribunais estão sujeitos a um imperativo de autocorrecção, sob pena de serem os próprios órgãos jurisdicionais a decidir o que não lhes cabe.

Para uma melhor compreensão da dimensão da discricionariedade, o Professor David Duarte procede a uma categorização entre enunciados normativos e normas.
Segundo o professor, a discricionariedade administrativa proveniente das normas é mais intuitivamente apreensível, pois é aquela em que o próprio Direito aparece a estabelecer o quadro de alternativas que geram a situação de escolha. Diferentemente, na discricionariedade oriunda nos enunciados normativos, ou melhor dizendo, na linguagem das normas, é menos evidente, isto em razão de resultar de incertezas da linguagem. Está, por isso, dominada pelo âmbito da interpretação.
No âmbito da discricionariedade de alternativas normativas, o Professor procede a uma diferenciação entre normas permissivas (onde existirá sempre discricionariedade, nem que seja somente a opção entre “fazer e não fazer”, isto porque a discricionariedade surge no próprio operador deôntico), impositivas (menos aptas que as anteriores a proporcionar discricionariedade, podendo ainda assim dar-lhe azo, nomeadamente se da estatuição constarem efeitos disjuntivos ou se esta for uma estatuição aberta, a preencher pelo órgão competente) , e as proibitivas (menos aptas ainda a originar discricionariedade, que pode ainda assim surgir quando haja uma proibição de alternativas disjuntivas, ou quando o efeito proibido tenha vários contrários).
Já a discricionariedade proveniente de alternativas linguísticas, gera a chamada margem de livre apreciação, e surge do manuseamento de frases e palavras. Pode ter origem sintática e semântica, embora seja sobre estas segundas que recai o ênfase. Assim, as incertezas semânticas subdividem-se em polissemia, vagueza e textura aberta.
Se as primeiras têm reduzido relevo, uma vez que são normalmente apreensíveis pelo contexto, isto é, pelo recurso a uma interpretação sistemática, as demais assumem um protagonismo inegável. A vagueza constitui uma incerteza semântica relativa à palavra que não tem definidas de forma precisa as fronteiras da sua denotação. Cria-se, por isso, uma zona de certeza positiva (que terá decerto aplicação), uma zona de certeza negativa (que certamente não será equacionada) e uma zona de incerteza, onde actuará privilegiadamente a discricionariedade. Do mesmo modo, a textura aberta situa-se num patamar próximo da vagueza, mas com a diferença de não se tratar de palavras estruturalmente vagas, mas cuja imprevisibilidade de resultado, em função da evolução do seu campo de significado e da realidade com que se relaciona, a conduz a alguma imprevisibilidade. Também aqui se evidenciam duas zonas de certeza, e uma terceira zona cinzenta, da dita imprevisibilidade.

Posto isto, e sumariado no essencial o ADN da discricionariedade administrativa, cumpre agora debruçar sobre os limites desta, fazendo uma aproximação a passos largos do tema central do post.

A existência de um cenário normativo de alternativas não significa, contudo, que qualquer uma possa ser escolhida. O exercício da discricionariedade administrativa está limitado pelas normas (regra geral, normas de princípio) que o caso concreto pode tornar aplicáveis. A este propósito o professor David Duarte distingue mesmo a discricionariedade concreta e a abstracta, que traduz a diferença entre as alternativas elegíveis no momento de aferição da norma e no momento da sua aplicação, após a incidência das normas limitadoras.
Também sobre isto fala o professor Freitas do Amaral, nomeadamente quando refere que “na discricionariedade, a lei não dá ao órgão administrativo competente liberdade para escolher qualquer solução que respeite a competência e o fim legal, antes o obriga a procurar a melhor solução que satisfaça o interesse público e de acordo com os princípios jurídicos que condicionam ou orientam a sua actuação”.
Concretizando, o professor David Duarte explica que a passagem do cenário abstracto ao concreto se dá com a adição de dois factores ao cenário normativo de alternativas: o caso que suscite a aplicação da norma, logo, o exercício da discricionariedade, e as normas que esse caso concreto possa convocar e que vêm limitar a discricionariedade. O caso que suscita a aplicação da norma tem um conjunto de propriedades, que para lá de “activarem” a norma que confere discricionariedade, podem igualmente preencher a previsão de normas terceiras, gerando igualmente a aplicação destas.
As normas de princípio são as que constituem o núcleo de normas mais apto para realizar o processo de limitação da discricionariedade. Ao lado dos princípios reguladores do exercício da função administrativa, há ainda que ter em conta as normas de direitos fundamentais.
O professor David Duarte, para efeitos de sumarização das normas de princípio reguladoras da actividade administrativa, enumera o princípio da igualdade, o princípio da imparcialidade e o princípio da proporcionalidade como os mais preponderantes. Alude ainda, igualmente, à importância (no âmbito das normas de direitos fundamentais) dos direitos de liberdade.

Posto isto, eis-nos chegados ao epicentro da presente exposição: o hard case do princípio da justiça.
Diz-nos o Professor David Duarte que o conceito normativo de justiça é dos que mais problemas traz à ciência jurídico-administrativa, e que surge em resultado de dois fenómenos comummente associados ao conceito. A saber, o vazio interno em razão do conteúdo de outros princípios, e o facto de ser possível a entrada de aportações extra-jurídicas. Sendo que quanto a este último o professor defende liminarmente que se trata de um “não problema”, visto que na qualidade de princípio de direito, o princípio da justiça tem um conteúdo normativo como qualquer outra norma, impondo, por isso, e apenas, efeitos jurídicos relativos ao seu conteúdo, nenhuma abertura sobrando para valorações morais ou outras. O princípio é apenas o seu conteúdo e a justiça é só a justiça.
Afastadas as conotações extra-jurídicas do conceito de justiça, importa pois determinar qual o conteúdo normativo que assiste ao princípio, como norma de direito.
O princípio da justiça é frequentemente remetido para significados de razoabilidade, igualdade, isenção, entre outras ideias-chave, que são corolários típicos de princípios distintos, totalmente autonomizados do princípio da justiça. Retirando-se daqui uma primeira conclusão de que o princípio da justiça seria aparentemente, e nas palavras de David Duarte, “um princípio vazio de conteúdo autónomo, cuja função não pode ser mais, nem mais operativa, do que a de constituir um princípio de representação extensiva dos outros, no sentido em que se limita a aglutinar conteúdos específicos das outras normas”. No entanto, tal ideia é negada pelo mesmo professor. E isto porque nem todas as ideias-base inerentes ao conceito de justiça se encontram no âmbito das normas de principio que, separadamente, aparecem a regular o exercício da função administrativa.
O conceito de justiça abarca também componentes não substantivas do conteúdo decisório, que representam conditio sine qua non da justiça de uma norma ou decisão. Defende o professor que este entendimento se situa na zona de certeza positiva do conceito de princípio de justiça e que escapa às zonas substantivas normativamente já separadas. Trocando por miúdos , o princípio da justiça teria uma bivalência, entre um polo manifestamente subjectivo, consumido pelos princípios que lhe dão forma, e um outro polo que seria o orientador das decisões e das normas. Não se trata portanto, de saber se um conteúdo é justo ou não, porque isso é feito separadamente por outros princípios (proporcionalidade, igualdade, boa-fé), mas antes de saber se foi justamente formulado. Em causa está saber, independentemente do conteúdo que confronta com o princípio da justiça, se as suas condições de formulação foram as ideais para que a eventual justiça que aí se encontre não seja meramente acidental e, assim, o resultado um mero acaso decisório.
Uma vez mais, nas palavras de David Duarte: “ A justiça de um conteúdo jurídico, nestes termos, não deriva apenas de o mesmo ser justo, mas também de ter sido justamente obtido: a justiça aleatória não é juridicamente admissível, pois o direito exige que um conteúdo jurídico justo seja racionalmente formulado, ou não estabeleceria várias regras procedimentais e formais nesse sentido, determinando que haja racionalidade na forma da sua configuração”.

Esta não é, no entanto, uma visão partilhada por outros nomes da doutrina, como é o caso do Professor Freitas do Amaral. Para este autor, que define o princípio da justiça como “o conjunto de valores que impõem ao Estado e a todos os cidadãos a obrigação de dar a cada um o que lhe é devido em função da dignidade da pessoa humana”, e com amparo no 266º da Constituição, dentro do dito princípio habitam outros subprincípios que nele de integram, como a igualdade, a proporcionalidade e a boa-fé. Frisa, no entanto, o Professor, que se justifica uma referência autónoma ao princípio da justiça, na medida em que este, sendo o referente fundamental da ordem jurídica considerara no seu todo, constitui o fundamento último da juridicidade da resposta dada pela referida ordem aos problemas que visa resolver. O princípio da justiça, tal como consagrado no nº2 do artigo 266º da Constituição, seria a ultima ratio da subordinação da Administração ao Direito.
                                                                                                       
Confrontam-se, deste modo, dois prismas distintos da utilidade prática que o princípio da justiça pode ter no âmbito do direito e, concretamente, da administração. Uma primeira perspectiva que vê no princípio da justiça algo mais do que uma soma de princípios, e recondu-la a uma ideia de constante prossecução do justo, inclusive nos meios para o alcançar. Isto com base no raciocínio de que um resultado aparentemente justo não o será se não for alcançado com plena justiça. E uma outra que vê no princípio da justiça uma ideia próxima de um “tudo ou nada”, isto é, ou uma síntese dos vários subprincípios que o integram, ou um perfeito vazio, do qual apenas sobraria a ideia de fundamento máximo de “idoneidade jurídica” para a actuação da administração.

Neste trabalho pude contactar com a obra de David Duarte, que na minha humilde opinião é altamente inovadora, sendo inegável o mérito com que o autor procede a esquematizações que, uma vez apreendidas (e apesar de duras de apreender!), são de uma utilidade extrema.
A temática da discricionariedade é, e uma vez mais na minha óptica, das mais ricas em sede de Direito Administrativo, e isto porque permite interessantes dogmatizações do ponto de vista jurídico, em função do facto de haver um “patamar” ao qual o Direito já não consegue chegar, e que terá inevitavelmente que colocar fora do seu âmbito, conferindo liberdade à Administração.
Em função disso mesmo, cri que seria este o enquadramento perfeito para pensar o princípio da justiça, enquanto aglutinador de princípios (que procuram ao máximo balizar da forma mais concreta possível a decisão discricionária) e enquanto ponto de difícil conceptualização.
No tocante à teoria de David Duarte, que procura dar um alcance mais profundo ao princípio (e tentativa com a qual concordo), creio que pecará pelo facto da tarefa que o professor destina como exclusiva do princípio da justiça poder, também ela, ser levada a cabo pelos outros subprincípios  contidos dentro do dito. Assim, e embora me pareça que há lógica numa afectação do princípio da justiça a algo mais do que uma síntese de princípios, creio (salvo prováveis melhores opiniões) que dificilmente não poderemos encarregar os outros princípios da tarefa de conseguir justamente o justo, deitando por terra a construção do Professor David Duarte.  Deste modo, e pese embora “a custo”, acabo por ser levado a concordar com a construção do professor Freitas do Amaral, por não conseguir encontrar alcances extra ao princípio da justiça que os seus subprincípios não alcancem já. 

                                                                                                             Tiago Quaresma, nº22115 








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