A obra do Professor David Duarte
sobre a discricionariedade administrativa proporciona uma viagem interessante
sobre o tema, que culmina com uma perspectiva singular acerca do princípio da
justiça, e da aplicabilidade autónoma do mesmo enquanto limite à discricionariedade.
Antes, porém, de partir para o
ponto nevrálgico do post , é
apropriado proceder a um enquadramento da temática da discricionariedade.
Desde logo, começar por dizer que a
Discricionariedade Administrativa se trata de um resultado normativo, longe,
portanto, de constituir um exercício livre da função administrativa que, ao
contrário, estará sempre normativamente habilitada. E está-lo-á para proceder a
uma escolha, nomeadamente a uma escolha entre alternativas, naquele que é o
cerne da discricionariedade, isto é, uma situação na qual o órgão competente,
dentro do quadro de alternativas presente, deve conformar o conteúdo do acto
jurídico a praticar de acordo com uma opção sua. Isto dito, percebe-se com
facilidade que a discricionariedade se encontra necessariamente balizada. Não
obstante, apesar da existência desses mesmos amparos normativos, é ao órgão
administrativo que cabe decidir, de forma autónoma, os efeitos jurídicos a
criar. A discricionariedade administrativa constitui, deste modo, uma zona de
exercício da função administrativa em que os tribunais estão sujeitos a um
imperativo de autocorrecção, sob pena de serem os próprios órgãos
jurisdicionais a decidir o que não lhes cabe.
Para uma melhor compreensão da
dimensão da discricionariedade, o Professor David Duarte procede a uma
categorização entre enunciados normativos e normas.
Segundo o professor, a
discricionariedade administrativa proveniente das normas é mais intuitivamente
apreensível, pois é aquela em que o próprio Direito aparece a estabelecer o
quadro de alternativas que geram a situação de escolha. Diferentemente, na
discricionariedade oriunda nos enunciados normativos, ou melhor dizendo, na
linguagem das normas, é menos evidente, isto em razão de resultar de incertezas
da linguagem. Está, por isso, dominada pelo âmbito da interpretação.
No âmbito da discricionariedade de
alternativas normativas, o Professor procede a uma diferenciação entre normas
permissivas (onde existirá sempre discricionariedade, nem que seja somente a
opção entre “fazer e não fazer”, isto porque a discricionariedade surge no
próprio operador deôntico), impositivas (menos aptas que as anteriores a
proporcionar discricionariedade, podendo ainda assim dar-lhe azo, nomeadamente
se da estatuição constarem efeitos disjuntivos ou se esta for uma estatuição
aberta, a preencher pelo órgão competente) , e as proibitivas (menos aptas
ainda a originar discricionariedade, que pode ainda assim surgir quando haja
uma proibição de alternativas disjuntivas, ou quando o efeito proibido tenha
vários contrários).
Já a discricionariedade proveniente
de alternativas linguísticas, gera a chamada margem de livre apreciação, e
surge do manuseamento de frases e palavras. Pode ter origem sintática e
semântica, embora seja sobre estas segundas que recai o ênfase. Assim, as
incertezas semânticas subdividem-se em polissemia, vagueza e textura aberta.
Se as primeiras têm reduzido
relevo, uma vez que são normalmente apreensíveis pelo contexto, isto é, pelo
recurso a uma interpretação sistemática, as demais assumem um protagonismo
inegável. A vagueza constitui uma incerteza semântica relativa à palavra que
não tem definidas de forma precisa as fronteiras da sua denotação. Cria-se, por
isso, uma zona de certeza positiva (que terá decerto aplicação), uma zona de
certeza negativa (que certamente não será equacionada) e uma zona de incerteza,
onde actuará privilegiadamente a discricionariedade. Do mesmo modo, a textura
aberta situa-se num patamar próximo da vagueza, mas com a diferença de não se
tratar de palavras estruturalmente vagas, mas cuja imprevisibilidade de
resultado, em função da evolução do seu campo de significado e da realidade com
que se relaciona, a conduz a alguma imprevisibilidade. Também aqui se
evidenciam duas zonas de certeza, e uma terceira zona cinzenta, da dita
imprevisibilidade.
Posto isto, e sumariado no
essencial o ADN da discricionariedade administrativa, cumpre agora debruçar
sobre os limites desta, fazendo uma aproximação a passos largos do tema central
do post.
A existência de um cenário
normativo de alternativas não significa, contudo, que qualquer uma possa ser
escolhida. O exercício da discricionariedade administrativa está limitado pelas
normas (regra geral, normas de princípio) que o caso concreto pode tornar
aplicáveis. A este propósito o professor David Duarte distingue mesmo a
discricionariedade concreta e a abstracta, que traduz a diferença entre as
alternativas elegíveis no momento de aferição da norma e no momento da sua
aplicação, após a incidência das normas limitadoras.
Também sobre isto fala o professor
Freitas do Amaral, nomeadamente quando refere que “na discricionariedade, a lei
não dá ao órgão administrativo competente liberdade para escolher qualquer
solução que respeite a competência e o fim legal, antes o obriga a procurar a
melhor solução que satisfaça o interesse público e de acordo com os princípios
jurídicos que condicionam ou orientam a sua actuação”.
Concretizando, o professor David
Duarte explica que a passagem do cenário abstracto ao concreto se dá com a
adição de dois factores ao cenário normativo de alternativas: o caso que
suscite a aplicação da norma, logo, o exercício da discricionariedade, e as
normas que esse caso concreto possa convocar e que vêm limitar a
discricionariedade. O caso que suscita a aplicação da norma tem um conjunto de
propriedades, que para lá de “activarem” a norma que confere
discricionariedade, podem igualmente preencher a previsão de normas terceiras,
gerando igualmente a aplicação destas.
As normas de princípio são as que
constituem o núcleo de normas mais apto para realizar o processo de limitação
da discricionariedade. Ao lado dos princípios reguladores do exercício da
função administrativa, há ainda que ter em conta as normas de direitos
fundamentais.
O professor David Duarte, para
efeitos de sumarização das normas de princípio reguladoras da actividade
administrativa, enumera o princípio da igualdade, o princípio da imparcialidade
e o princípio da proporcionalidade como os mais preponderantes. Alude ainda,
igualmente, à importância (no âmbito das normas de direitos fundamentais) dos
direitos de liberdade.
Posto isto, eis-nos chegados ao
epicentro da presente exposição: o hard
case do princípio da justiça.
Diz-nos o Professor David Duarte que
o conceito normativo de justiça é dos que mais problemas traz à ciência
jurídico-administrativa, e que surge em resultado de dois fenómenos comummente
associados ao conceito. A saber, o vazio interno em razão do conteúdo de outros
princípios, e o facto de ser possível a entrada de aportações extra-jurídicas.
Sendo que quanto a este último o professor defende liminarmente que se trata de
um “não problema”, visto que na qualidade de princípio de direito, o princípio
da justiça tem um conteúdo normativo como qualquer outra norma, impondo, por
isso, e apenas, efeitos jurídicos relativos ao seu conteúdo, nenhuma abertura
sobrando para valorações morais ou outras. O princípio é apenas o seu conteúdo
e a justiça é só a justiça.
Afastadas as conotações extra-jurídicas
do conceito de justiça, importa pois determinar qual o conteúdo normativo que
assiste ao princípio, como norma de direito.
O princípio da justiça é
frequentemente remetido para significados de razoabilidade, igualdade, isenção,
entre outras ideias-chave, que são corolários típicos de princípios distintos,
totalmente autonomizados do princípio da justiça. Retirando-se daqui uma
primeira conclusão de que o princípio da justiça seria aparentemente, e nas
palavras de David Duarte, “um princípio vazio de conteúdo autónomo, cuja função
não pode ser mais, nem mais operativa, do que a de constituir um princípio de
representação extensiva dos outros, no sentido em que se limita a aglutinar
conteúdos específicos das outras normas”. No entanto, tal ideia é negada pelo
mesmo professor. E isto porque nem todas as ideias-base inerentes ao conceito
de justiça se encontram no âmbito das normas de principio que, separadamente,
aparecem a regular o exercício da função administrativa.
O conceito de justiça abarca também
componentes não substantivas do conteúdo decisório, que representam conditio sine qua non da justiça de uma
norma ou decisão. Defende o professor que este entendimento se situa na zona de
certeza positiva do conceito de princípio de justiça e que escapa às zonas
substantivas normativamente já separadas. Trocando por miúdos , o princípio da justiça teria uma bivalência, entre um polo
manifestamente subjectivo, consumido pelos princípios que lhe dão forma, e um
outro polo que seria o orientador das decisões e das normas. Não se trata
portanto, de saber se um conteúdo é justo ou não, porque isso é feito
separadamente por outros princípios (proporcionalidade, igualdade, boa-fé), mas
antes de saber se foi justamente formulado. Em causa está saber, independentemente
do conteúdo que confronta com o princípio da justiça, se as suas condições de
formulação foram as ideais para que a eventual justiça que aí se encontre não
seja meramente acidental e, assim, o resultado um mero acaso decisório.
Uma vez mais, nas palavras de David
Duarte: “ A justiça de um conteúdo jurídico, nestes termos, não deriva apenas
de o mesmo ser justo, mas também de ter sido justamente obtido: a justiça
aleatória não é juridicamente admissível, pois o direito exige que um conteúdo
jurídico justo seja racionalmente formulado, ou não estabeleceria várias regras
procedimentais e formais nesse sentido, determinando que haja racionalidade na
forma da sua configuração”.
Esta não é, no entanto, uma visão
partilhada por outros nomes da doutrina, como é o caso do Professor Freitas do
Amaral. Para este autor, que define o princípio da justiça como “o conjunto de
valores que impõem ao Estado e a todos os cidadãos a obrigação de dar a cada um
o que lhe é devido em função da dignidade da pessoa humana”, e com amparo no
266º da Constituição, dentro do dito princípio habitam outros subprincípios que
nele de integram, como a igualdade, a proporcionalidade e a boa-fé. Frisa, no
entanto, o Professor, que se justifica uma referência autónoma ao princípio da
justiça, na medida em que este, sendo o referente fundamental da ordem jurídica
considerara no seu todo, constitui o fundamento último da juridicidade da
resposta dada pela referida ordem aos problemas que visa resolver. O princípio
da justiça, tal como consagrado no nº2 do artigo 266º da Constituição, seria a ultima ratio da subordinação da
Administração ao Direito.
Confrontam-se,
deste modo, dois prismas distintos da utilidade prática que o princípio da
justiça pode ter no âmbito do direito e, concretamente, da administração. Uma
primeira perspectiva que vê no princípio da justiça algo mais do que uma soma
de princípios, e recondu-la a uma ideia de constante prossecução do justo, inclusive
nos meios para o alcançar. Isto com base no raciocínio de que um resultado
aparentemente justo não o será se não for alcançado com plena justiça. E uma
outra que vê no princípio da justiça uma ideia próxima de um “tudo ou nada”,
isto é, ou uma síntese dos vários subprincípios que o integram, ou um perfeito
vazio, do qual apenas sobraria a ideia de fundamento máximo de “idoneidade
jurídica” para a actuação da administração.
Neste
trabalho pude contactar com a obra de David Duarte, que na minha humilde
opinião é altamente inovadora, sendo inegável o mérito com que o autor procede
a esquematizações que, uma vez apreendidas (e apesar de duras de apreender!),
são de uma utilidade extrema.
A
temática da discricionariedade é, e uma vez mais na minha óptica, das mais
ricas em sede de Direito Administrativo, e isto porque permite interessantes
dogmatizações do ponto de vista jurídico, em função do facto de haver um
“patamar” ao qual o Direito já não consegue chegar, e que terá inevitavelmente
que colocar fora do seu âmbito, conferindo liberdade à Administração.
Em
função disso mesmo, cri que seria este o enquadramento perfeito para pensar o
princípio da justiça, enquanto aglutinador de princípios (que procuram ao
máximo balizar da forma mais concreta possível a decisão discricionária) e
enquanto ponto de difícil conceptualização.
No
tocante à teoria de David Duarte, que procura dar um alcance mais profundo ao
princípio (e tentativa com a qual concordo), creio que pecará pelo facto da
tarefa que o professor destina como exclusiva do princípio da justiça poder,
também ela, ser levada a cabo pelos outros subprincípios contidos dentro do dito. Assim, e embora me
pareça que há lógica numa afectação do princípio da justiça a algo mais do que
uma síntese de princípios, creio (salvo prováveis melhores opiniões) que
dificilmente não poderemos encarregar os outros princípios da tarefa de
conseguir justamente o justo, deitando por terra a construção do Professor
David Duarte. Deste modo, e pese embora
“a custo”, acabo por ser levado a concordar com a construção do professor
Freitas do Amaral, por não conseguir encontrar alcances extra ao princípio da justiça que os seus subprincípios não
alcancem já.
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