domingo, 21 de abril de 2013

Desaplicação de normas inconstitucionais enquanto colisão de princípios­: a pretensa contraposição entre a constitucionalidade e a legalidade


1. Muitos rios de tinta correram com o objetivo de tratar a temática da desaplicação de normas inconstitucionais por parte da Administração. É precisamente essa questão, que nesta breve exposição pretendemos recordar, apesar de numa vertente muito única e particular: aqui só trataremos um dos principais argumentos deste tão grande e envolvente debate, o princípio da constitucionalidade em confronto com o princípio da legalidade. A nosso ver, responder a questão se a Administração pode desaplicar normas inconstitucionais, antes da sua declaração da constitucionalidade, implica, claramente uma abordagem à colisão dos princípios supra referidos.
2. A oposição entre princípio da legalidade e da constitucionalidade é nada mais, nada menos, que uma ilusão. O principio da legalidade, consentaneamente identificado pela doutrina no artigo 266.º n.º2 (1), significa que “ os órgãos e agentes da Administração pública só podem agir com fundamento na lei dentro dos limites por ela impostos” (2). Por outro lado, o principio da constitucionalidade, consagrado não só no artigo 266.º n.º 2 mas também no artigo 3.º n.º3, refere a necessidade de conformidade constitucional dos atos de todas as entidades públicas. Isto dito, recordamos MAURICE HAURIOU, que nos fala do conceito de bloc legal, conceito que engloba então o princípio da legalidade e da constitucionalidade, identificando os dois como parte integrante do princípio da juridicidade (3). Por tudo isto, a questão não se pode resolver pelo conflito entre os princípios referidos como se fossem distintos, enquanto ambos são, na verdade, vertentes do princípio da juridicidade. Caberá sim adicionar á discussão princípios como a o da separação de poderes e da segurança jurídica, estes sim, a priori, passíveis de resolver os conflitos que possam surgir (4).

3. Para não tendermos para uma exposição abstrata e esotérica, imaginemos uma norma infraconstitucional que padece de um desvalor de nulidade atipia, por ser inconstitucional. Essa norma, é nula desde o início, não tendo em rigor produzido efeitos, mas apenas, uma mera aparência dos mesmos. Ora, se esta norma não é uma norma válida, esta norma não pode ser parte integrante do bloco de legalidade, que deve ser entendido como um bloco normativo válido, pelo que, jamais esta norma poderá prevalecer, por aplicação do princípio da juridicidade. O que significa que, mesmo por aplicação do “subprincípio” da legalidade, a Administração não está vinculada a aplicar a norma. Pelo contrário, assistimos a uma norma que impõe à Administração que desaplique normas inconstitucionais quando as identifique, sob pena de violar o ultimo reduto da legalidade: a Constituição. Salientamos aqui, que na base da nossa construção está a teoria das normas negativas de competência, que nos diz que: se a segunda dimensão do “subprincípio” da constitucionalidade é a de que a Administração está impedida de praticar atos e aplicar normas inconstitucionais, então este subprincípio tem uma dimensão competêncial, pois qualquer norma se deve considerar atributiva da competência para a adoção das condutas necessárias para evitar a sua violação. Sendo nada mais, nada menos, a competência em questão, a de desaplicação de normas legais inconstitucionais (5).

4. Por aplicação do princípio da juridicidade, a Administração deverá desaplicar normais legais sempre que padeçam de inconstitucionalidades. Contudo, como pode a Administração identifica-las? E se não o fizer, será responsabilizada? Como é normal a Administração munir-se-á da sua capacidade interpretativa para averiguar da inconstitucionalidade, não descurando, contudo a necessidade do ónus da argumentação e da sua responsabilidade por desaplicação infundada de uma qualquer norma. O que acontecerá, em regra, será a aplicação da na norma infraconstitucional (não devido ao critério hierárquico), mas sim, devido ao princípio da segurança jurídica (6) imposto pela própria Constituição. Assim, in casu, sempre que este princípio tiver mais peso, haverá o dever de aplicação da norma (situação que ocorre com grande frequência). Por outro lado, quando este princípio não tiver peso suficiente, prevalecerá o “subprincípio” da Constitucionalidade, pelo que haverá a desaplicação da norma (7).

5. Em suma, em caso de dúvida sobre a constitucionalidade de determinada norma, deve o órgão administrativo proceder á comunicação ao órgão hierarquicamente superior. Sendo, este órgão quem deve formular o juízo relativo à desaplicação ou não da norma, tendo em conta o princípio da segurança jurídica e o “subprincípio” da constitucionalidade, que como vimos, só aparentemente conflitua com a legalidade.

(1) Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, pág. 66 e ss.

(2) Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso (…), pág, 50 e ss.

(3) GOMES CANOTILHO e VIRAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 895

(4) Referimo-nos neste ponto à “ponderação”, forma de resolução de conflitos entre princípios proposta por ROBERT ALEXY. Contudo a matéria do princípio da separação de poderes, não será aqui alvo de análise.

(5) Ver, PAULO OTERO, O Poder de Substituição em Direito Administrativo, pág.562 e ss.

(6) O principio da segurança jurídica, um dos princípios indispensáveis do Estado de Direito Democrático, sendo deduzido do artigo 2.º da Constituição. É este princípio que na sua dimensão de proteção da confiança (previsibilidade dos efeitos jurídicos) muitas vezes soluciona o conflito de normas habilitantes de desaplicação.

(x) Apesar de existir tamanha diferença de resultados entre uma posição e outra, há um núcleo consensualmente aceite pela doutrina no tocante à desaplicação de normas inconstitucionais. Fazem parte desse núcleo, (i) leis inexistentes; (ii) leis manifestamente inconstitucionais, estando em causa direitos fundamentais. Cfr. Posições gerais a favor da desaplicação, ANDRÉ SALGADO MATOS, A Fiscalização Administrativa da Constitucionalidade e RUI MEDEIROS, A Decisão de Inconstitucionalidade. Contra: CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional-Tomo I. e PAULO OTERO, Legalidade e Administração Publica (com uma posição mais moderada, que muito nos agrada).

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