Para o presente trabalho,
propus-me analisar a importância do acto administrativo para a Administração
Pública e o seu papel ao longo do tempo.
Fazendo uma breve introdução
histórica, o acto administrativo surgiu no liberalismo pós-revolucionário
francês oitocentista como instrumento de protecção da administração pública em
face da interferência dos tribunais comuns conservadores e
contra-revolucionários.
As suas origens históricas
permitem perceber a razão pela qual o acto inicialmente era um acto
autoritário, no final do século XX o juiz Otto Mayer desenvolveu o conceito,
definindo-o como ´´uma pronúncia
obrigatória pertencente à administração, que, no caso individual, determina
perante o súbdito qual deve ser para ele o direito’’ . Esta visão de Otto
Mayer teve grande influência constituindo o seu conceito um dos mais influentes
do direito moderno.
O acto administrativo era então
uma conduta individual de autoridade constituindo assim a forma típica do
paradigma liberal da administração agressiva, subtraída à apreciação dos
tribunais comuns e ao controlo dos tribunais administrativos.
No entanto, com o decorrer do
tempo a sua característica autoritária foi perdendo peso por um inúmero conjunto
de situações que permitiram a sua evolução nesse sentido. O acto sofreu alguma
descaracterização em relação à sua configuração e funções originárias.
O professor Marcelo Rebelo de
Sousa enumera factores como: o aprofundamento da democracia representativa, o
alargamento dos meios de tutela dos particulares contra os poderes públicos, a
plena jurisdicionalização dos tribunais administrativos, a implantação do
Estado social que faz emergir uma administração prestadora e infra-estrutural e
o surgimento de outras formas de actividade administrativa, como o contrato.
Outros factores que permitiram a
evolução dos actos administrativos prendem-se com o aprofundamento dos direitos
fundamentais, o emergir dos direitos de participação dos particulares na
formação de decisões que constituiu um factor de peso para o carácter
autoritário ter diminuído consideravelmente e que veio a culminar num diálogo
entre a administração e o particular, a intervenção do Estado nas esferas
económica e social que fez com que o acto passasse a operar em áreas da
administração prestadora e infra-estrutural e por último, o aperfeiçoamento do
contencioso administrativo que levou à existência de mecanismos de reacção
jurisdicional contra a administração pública que não pressupõem a emissão de actos
administrativos.
Apesar de ter sofrido uma grande
transformação, o acto administrativo não perdeu o lugar central que ocupa desde
o início da sua existência devido a ser a manifestação mais presente e visível
do poder administrativo e por ter demonstrado nos últimos anos a capacidade de
se acomodar à evolução das tarefas da administração pública.
Ele continua a ser a forma de
actuação mais significativa da administração, isto porque, para além dos actos
administrativos que são praticados como decisões, muitos outros surgem durante
os procedimentos decisórios e executivos bem como durante os procedimentos para
a formação e execução de regulamentos ou contratos administrativos assim como
podem surgir actos em todos os processos que decorram nos tribunais
administrativos.
Fazendo agora uma breve definição
do acto administrativo, segundo o professor Freitas do Amaral o acto é o ‘’acto jurídico unilateral praticado, no
exercício do poder administrativo, por um órgão da administração ou por outra
entidade pública ou privada para tal habilitada por lei, e que traduz uma
decisão tendente a produzir efeitos jurídicos sobre uma situação individual e
concreta’’.
Trata-se de um acto jurídico o que significa que lhe
são aplicáveis os princípios gerais de direito referentes ao acto jurídico em geral.
É também um acto unilateral dado que provém de um autor cuja declaração é
perfeita e independente do concurso de vontades de outros sujeitos. O que
significa que mesmo que existam actos que necessitem de aceitação, os actos
administrativos não deixam por isso de ser actos unilaterais. A aceitação é
apenas condição de eficácia do acto, não integra o seu conteúdo nem constitui
uma condição para a sua existência. O acto existe e é válido, se não receber a
aceitação nos casos em que precise torna-se ineficaz mas não foi por isso que
não foi um acto.
O acto deve também ser praticado no exercício do poder administrativo, no
exercício de um poder público, ou seja ao abrigo de normas de direito público
para o desempenho de uma actividade administrativa de gestão pública. Exclui-se
assim os actos que sejam desempenhados pela administração pública ao abrigo de
actividades de gestão privada, nem são actos administrativos os actos
políticos, legislativos e jurisdicionais.
O acto administrativo é um acto praticado por um órgão administrativo.
Isto significa que são actos administrativos os actos emanados pelas
autoridades administrativas, também designadas por Otto Mayer como a
aristocracia da administração. Esta aristocracia significa que não é qualquer
funcionário público ou agente administrativo que pode praticar actos
administrativos, só um número restrito da função administrativa tem esse poder (poder
proveniente da lei ou de uma delegação de poderes, prevista também na lei).
Para além desse número restrito
existem pessoas colectivas com este poder que não pertencem à administração em
sentido orgânico, são exemplo pessoas colectivas privadas nomeadamente as
pessoas colectivas de utilidade pública e as sociedades de interesse colectivo,
e isto porque constituem pessoas colectivas que colaboram com a administração
pública nas suas atribuições, estando os seus actos que sejam qualificados como
actos administrativos, sujeitos a impugnação contenciosa como qualquer acto
administrativo.
Podem praticar também actos
administrativos órgãos do Estado que não sejam órgãos da administração nem
pertencentes ao poder executivo, ou seja, actos integrados no poder moderador,
legislativo ou judicial.
Para uma melhor compreensão da
importância do acto administrativo é necessário recorrer às suas funções. O
acto administrativo é um conceito central do direito administrativo material,
procedimental e do direito processual administrativo, não obstante existirem,
evidentemente, relações jurídicas administrativas não conformadas por acto
administrativo.
Dentro do direito administrativo
material, o acto assume cerca de quatro funções essenciais: tem uma vocação
estabilizadora conferindo certeza jurídica às situações sobre as quais incide;
tem uma função definitória, disciplinando uma determinada situação jurídica
sendo nesta medida, o instrumento por excelência da autotutela declarativa da administração;
o acto é também o título legitimador de situações jurídicas da administração e
dos particulares, fundando a execução das suas decisões e permitindo opor à
administração ou a terceiros as situações jurídicas deles decorrentes; tem
também uma função concretizadora realizando no caso individual e concreto as
normas gerais e abstractas integrantes do bloco de legalidade administrativa.
No campo do direito
administrativo procedimental o acto administrativo constitui o culminar de um
procedimento que visa a sua emissão, um acto praticado no decurso de um
procedimento que visa a adopção de uma conduta posterior ou a execução de uma
conduta anterior.
No campo do direito processual
administrativo o acto administrativo assume papel de garantia constitucional e
legal da intervenção dos tribunais administrativos perante um litígio emergente
de uma relação jurídico-administrativa que por ele tenha sido disciplinada.
De acordo com Freitas do Amaral o
acto administrativo é verdadeiramente a figura central e fundamental do Direito
Administrativo como já foi referido acima. Sérvulo Correia refere mesmo que,
não obstante existirem nos dias de hoje vários modos de conduta administrativa
o acto administrativo mantém-se como a forma mais utilizada no exercício
jurídico da função administrativa.
Para o professor, a relação entre
o acto administrativo e o recurso contencioso (isto é, a reacção do Direito
Administrativo criada para proteger os direitos dos particulares, o recurso
contencioso de anulação de possíveis violações de posições subjectivas dos
particulares) constitui o ponto essencial do Direito Administrativo.
Contrariamente a Freitas do
Amaral e a Marcelo Rebelo de Sousa, que também defende o acto como conceito central
do direito administrativo, surge paralelamente Vasco Pereira da Silva que
contesta esse entendimento tradicional do direito administrativo.
Defende mesmo que a doutrina
clássica deve ser repudiada por cerca de três ordens essenciais de razões.
Segundo o professor o acto já não é nos dias de hoje a figura central da
dogmática da nossa disciplina, defendendo a sua substituição pelo conceito de
´´relação jurídica administrativa´´; segundo, definir o acto administrativo
como acto de autoridade é uma ideia já ultrapassada, típica das épocas do
Estado Liberal e do Estado autoritário, mas inadequada aos dias de hoje;
contraria também, por último, que o recurso contencioso de anulação acima
referido seja nos dias de hoje a única ou a principal garantia jurisdicional
dos particulares dado que, há também que considerar as acções para o
reconhecimento de direitos ou interesses legítimos bem como as demais acções
existentes no contencioso administrativo.
Sobre esta dissertação, Freitas
do Amaral surge contra os seus argumentos. Relativamente ao acto como acto
autoritário, segundo o professor não é certo que no Estado Liberal o mesmo
fosse um conceito autoritário. Isto por dois motivos: os autores através dos
quais Vasco Pereira da Silva sustentou esse argumento não são na verdade autores
do Estado Liberal (como por exemplo Otto Mayer) e também porque o conceito de
acto administrativo como acto autoritário é independente dos regimes políticos,
ele mantém-se o mesmo quer nos regimes pré-liberais, autoritários e
democráticos. O que muda conforme os regimes políticos não é, portanto, o
conceito mas sim o seu regime jurídico e as garantias e as garantias dos
particulares perante condutas ilegais da administração.
Aliás, num regime político liberal e
democrático há necessariamente actos de autoridade dado que, onde há Estado há
poder e este exprime-se como autoridade por meio de normas e actos concretos.
Isto que dizer que a liberdade e a democracia não prescindem da autoridade do
Estado.
Segundo o entendimento do
professor Freitas do Amaral para além de todos estes motivos, a razão pela qual
a doutrina clássica do Direito Administrativo continental europeu deu mais
relevo às figuras do acto e do recurso contencioso de anulação, não esteve
relacionada com a concepção autoritária do Direito Administrativo mas sim por
serem encarados como as figuras que potencialmente seriam mais perigosas para a
garantia dos interesses dos particulares e que melhor os poderiam defender
contra agressões da sua esfera jurídica.
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