quinta-feira, 28 de março de 2013

Conceitos Indeterminados

 

A discricionariedade consiste numa liberdade conferida por lei à administração para que esta possa escolher entre várias alternativas de actuação juridicamente admissíveis. Tal liberdade pode dizer respeito à escolha entre agir e não agir (discricionariedade de acção), à escolha entre duas ou mais possibilidades de actuação predefinidas por lei (discricionariedade de escolha) ou à criação da actuação concreta dentro dos limites jurídicos aplicáveis (discricionariedade criativa). É esta a definição que o professor Marcelo Rebelo de Sousa nos dá.
Não existem dúvidas da existência de discricionariedade nos casos em cima referidos.
No entanto, pode-se colocar a seguinte questão: a administração também dispõe de poderes discricionários naquelas situações em que a lei utiliza conceitos indeterminados?
As normas jurídicas têm tradução textual, e por isso estão sujeitas às contingências da linguagem. Uma delas é a indeterminação vocabular: todas as palavras comportam alguma incerteza semântica. A doutrina fala então em conceitos indeterminados.
O grau de indeterminação dos conceitos varia muitíssimo. No sentido amplo, conceitos indeterminados são aqueles cujo reconhecimento intervém uma certa dose de subjectividade do intérprete.
Mais concretamente, o problema coloca-se em saber se a interpretação e aplicação pelo administrador destes conceitos são feitas:
 a) no uso de um poder discricionário;
 b) com uma certa margem de livre apreciação;
 c) no puro exercício de um poder vinculado.

a)       A primeira teoria (no uso de um poder discricionário) referida é uma das teorias mais antigas, contudo actualmente perdeu quase todo o apoio e está quase completamente posta de lado entre nós.
A ideia fundamental desta teoria é a de que os conceitos indeterminados são empregues intencionalmente pelo Legislador com o objectivo de atribuir à autoridade administrativa um poder de livre decisão para que esta possa reagir atempadamente e da melhor forma às circunstâncias imponderáveis que caracterizam a vida administrativa. Só face ao caso concreto pode a administração encontrar a medida mais adequada à resolução desses problemas. O Legislador não pode prever todos os imponderáveis da vida administrativa, não tem o conhecimento real de cada circunstância concreta nem conhece quais os meios de que a administração dispõe para resolver as diferentes situações que surgem no dia-a-dia. Só um administrador livre pode encontrar a medida ideal. Seria precisamente para deixar à administração liberdade de manobra que o legislador recorria ao emprego destas expressões altamente vagas.
Não concordo com esta posição, pois não é certo que o emprego pelo Legislador de conceitos altamente vagos seja um emprego intencional. Claro que o pode ser algumas vezes, mas com certeza que muitas vezes o Legislador recorre a conceitos para se manter fiel a uma linguagem jurídica tradicional. Em segundo lugar, é bem diferente aplicar intencionalmente um conceito ou aplicá-lo com a intenção de atribuir um poder discricionário. A intenção com que o Legislador emprega os conceitos só pode ser interpretada no contexto em que ele os empregou, pelo que eles nunca devem ser desprendidos da norma de que fazem parte.

b)      A segunda teoria (com uma certa margem de livre apreciação) surgiu na Alemanha, reconhece que alguns dos conceitos indeterminados atribuem ao seu intérprete aplicador um espaço de livre apreciação, para que ele possa encontrar, no momento exacto, a medida certa para responder à situação de facto concreta. Esta teoria não diz respeito a todos os conceitos legais altamente indeterminados, mas apenas a alguns deles, que pela sua natureza atribuiriam um espaço de livre apreciação.
Esta doutrina conhece várias nuances. As duas mais importantes são a que coloca a margem de livre apreciação no campo da previsão dos factos e a que a coloca no campo dos efeitos de direito da normaNa primeira doutrina reconhece-se que na zona da margem de livre apreciação não pode existir controlo jurisdicional, embora esta impossibilidade não resulte da vontade do legislador, mas sim da impossibilidade prática de controlar, a posteriori, decisões altamente subjectivas que pertencem à competência do administrador. A administração tem a responsabilidade pela sua actividade e por isso deve-lhe ser reconhecida um privilégio na sua decisão. Já na doutrina que coloca a margem de livre apreciação no campo dos efeitos da norma resulta que a interpretação dos conceitos indeterminados não pode ser controlada integralmente pelos tribunais administrativos por aquela corresponder à voluntária atribuição pelo Legislador. O tribunal administrativo apenas pode controlar a interpretação e aplicação destes conceitos nos seus contornos exteriores, pois o núcleo destes conceitos faz parte da actividade administrativa, núcleo esse tomado como zona de verdadeira discricionariedade administrativa

Entre nós, como defensor da doutrina da margem de livre apreciação, temos o professor Marcelo Rebelo de Sousa. Primeiro que tudo o professor começa por dizer que a margem de livre apreciação consiste num espaço de liberdade da administração na apreciação de situações de facto que dizem respeito aos pressupostos das suas decisões. Ou seja, diz respeito essencialmente à previsão das normas jurídico-administrativas. O professor defende que uma das situações em que a margem de livre apreciação pode ocorrer é no caso de conceitos indeterminados. Não é possível sustentar que a utilização de quaisquer conceitos indeterminados nas previsões das normas tem sempre como consequência a margem de livre apreciação administrativa. Se assim fosse, a actividade da administração seria controlada pelos tribunais apenas numa extensão exígua. Contudo há situações em que os conceitos indeterminados levam a que não se possa considerar existir apenas uma decisão correcta para a decisão de um caso concreto, é nestes casos que se justifica a existência de margem de livre apreciação.
O difícil é exactamente saber quais as situações em que a indeterminação dá ou não origem a margem de livre decisão. O professor Marcelo Rebelo de Sousa defende que a identificação das situações em que a utilização legal de conceitos indeterminados confere margem de livre apreciação à administração deve ter em conta os fundamentos substanciais da margem de livre decisão em geral, assentando em três aspectos:
1.      O apuramento da razão subjacente à expressão do sentido normativo através de conceitos indeterminados. A margem de livre apreciação não existe quando a sua utilização decorre apenas de limites da própria linguagem e sim quando decorra dos limites impostos à função legislativa pela impossibilidade ou inconveniência da definição exaustiva antecipada dos pressupostos normativos do exercício da competência;
2.      A formulação de um raciocínio funcionalmente adequado à luz do princípio da separação de poderes que impõe a margem de livre apreciação apenas nos casos em que o controlo jurisdicional integral da concretização casuística dos conceitos indeterminados implique a usurpação do poder administrativo.
3.      A ponderação em concreto entre o princípio da separação de poderes e os direitos fundamentais dos particulares eventualmente lesados pela decisão administrativa, a prevalência dos últimos sobre o primeiro ditará a necessidade de controlo jurisdicional e consequentemente a ausência de margem de livre apreciação.

c)       Quanto à última doutrina o que estaria em causa era descobrir, com o auxílio de pistas fornecidas pela própria norma, o único sentido possível da lei e não tornar relevante a vontade da administração. Neste caso a administração encontrar-se-ia vinculada e obrigada a descobrir qual o sentido da lei e qual seria a vontade do legislador, não dispunha de poder discricionário. Havendo vinculação, há também controlo judicial, ou seja, o tribunal pode posteriormente proceder à determinação do conceito e é esta que prevalece. Já foi a doutrina defendida pelo professor Freitas do Amaral.

Parece-me que a melhor orientação a seguir será a do professor Marcelo Rebelo de Sousa. Deve-se olhar caso a caso e ter em conta os aspectos a que o professor se refere. Não há uma solução única, por isso o que temos de saber, olhando para cada caso, é quando é que a indeterminação dá ou não origem à margem de livre decisão. Nos casos que não dê, pois os conceitos indeterminados não têm todos a mesma feição, a solução é recorrer-se à interpretação.



Patrícia dos Santos 

Sem comentários:

Enviar um comentário