terça-feira, 23 de abril de 2013

Resumo do acórdão do tribunal constitucional nº 594/2008

A jus-fundamentalidade do direito de audiência prévia e do direito à fundamentação



Relatório:
1- José Maria Campos Casais recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº1 do art. 70º da Lei nº 28/82 de 15/11, na sua actual versão da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo ( STA ), de 2 de Outubro de 2007, que negou provimento ao recurso interposto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.

2- O recorrente instaurou recurso contencioso contra o Vereador do Pelouro da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, relativamente ao seu despacho, que o notificou para, no prazo de 30 dias, "apresentar processo para obtenção da necessária licença de utilização para o estabelecimento de mercearia, ou, em alternativa, para, no mesmo prazo, proceder ao encerramento do estabelecimento" e ao despacho da mesma autoridade, que indeferiu a "requerida suspensão do prazo concedido pelo acto anterior".

3- Por despacho judicial, foi rejeitado o recurso contencioso, relativamente ao primeiro daqueles despachos, por ter julgado que havia caducado o direito à respectiva interposição.
Tendo prosseguido o recurso relativamente ao segundo despacho, foi-lhe negado provimento por sentença.

4- Inconformado com ambas as decisões, o recorrente interpôs recurso jurisdicional para o STA, mas sem êxito.

Do direito
Como a jurisprudência do STA vem afirmando, a falta de audiência do interessado, prevista no art. 100º do CPA, quando devida, gera, em princípio, mera anulabilidade, pois, não sendo o direito de ser ouvido um direito fundamental, é de aplicar a regra geral contida no art. 135º do mesmo Código. A função instrumental do direito de audiência, torna incompreensível que se lhe atribua a dignidade de direito fundamental - e muito menos que, se considere que a sua preterição ofende " o conteúdo essencial de um direito fundamental" ( art. 133º/2, alinea d), do CPA ) em termos de que tal gravidade justifique o seu sancionamento com a nulidade do acto conclusivo do respectivo procedimento - quando o direito substantivo em causa no procedimento não merece, ele próprio, a qualificação de direito fundamental.
E é justamente o que ocorre no caso presente, em que o direito substantivo em causa - o direito à licença de utilização de um estabelecimento - não reveste as características de direito fundamental.
Também no que à fundamentação dos actos administrativos, em si mesma, concerne, constituindo um direito instrumental ou formal, com vista à defesa de outros de conteúdo material, também não contende com algum direito fundamental, salvo se em concreto serve a defesa de um direito desta natureza, o que, como se viu, não é o caso dos autos.
Estando em discussão a natureza do vício que inquina o acto - anulabilidade ou nulidade ( por pretensa preterição dos deveres de audiência e de fundamentação ), concretamente para aferir da tempestividade da impugnação - ou seja, a (in)validade do acto, a alusão neste âmbito à notificação de acto administrativo que não contenha os seus elementos essenciais, constitui questão de todo impertinente, por respeitar à eficácia do acto, até pelo que acima se deixou referido sobre o que a propósito foi registado em sede de probatório.
Pelas mesmas razões e tendo em vista o já exposto a respeito do nº 1 do art. 123º do CPA, e não se integrando a invocação do mais que é alegado no elenco das nulidades ( concretamente no enunciado no nº 2 daquele dispositivo ), não pode a mesma deixar de improceder.
Face ao exposto o haverá que manter decidido.

5- Dizendo-se, mais uma vez, inconformado, o recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, através de requerimento do seguinte teor:

Fundamentação
Da questão prévia
Do mérito do recurso

O artigo 267º, nº 5, da Constituição dispõe do seguinte modo: "O processamento da actividade administrativa será objecto de lei especial, que assegurará a racionalização dos meios a utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito".
O preceito constitucional assume, expressamente, que a participação dos interessados na formação das decisões ou deliberações administrativas, ou, dito de modo mais singelo, no procedimento administrativo, constitui um princípio que o legislador da "lei especial" deve assegurar, ao dispor sobre o " processamento da actividade administrativa".
A doutrina divide-se quanto à natureza do direito de participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito. Há autores que o perspectivam como direito análogo aos direitos, liberdades e garantias fundamentais e façam, daí, decorrer a sanção da invalidade constitucional da lei que o viole e a nulidade do acto administrativo praticado com ofensa do direito de audição, de acordo com o disposto no art.133º, nº 2, alínea d), do CPA.
 
Resulta, claramente, do referido preceito que a Constituição não prevê a participação dos interessados, no procedimento administrativo, como uma garantia individual cuja concreta operacionalidade prático-jurídica, relativamente a determinado sujeito, derive, directa e imediatamente, da normal constitucional. A Constituição limita-se a afirmar a existência da garantia como um instrumento jurídico-procedimental que o legislador especial deve prever, ou seja, como garantia dependente de intermediação e densificação legislativas.
A audição do interessado tem, assim, a natureza de princípio constitucional cuja efectivação como regra se impõe que seja adoptada pelo legislador ordinário, não podendo a sua dispensa deixar de estar sujeita aos princípios da necessidade e da proporcionalidade, ínsitos no princípio do Estado de direito democrático (cf.art.2º da CRP).
Nesta perspectiva, o direito de audição corresponde a uma formalidade essencial do procedimento administrativo, funcionalizado para a formação das decisões e deliberações administrativas, com a participação dos interessados.
Mas, atribuir-se ao direito de audição,na conformação do procedimento a que o legislador ordinário se encontra obrigado, uma função essencial, e, até, quando previsto, a natureza de uma formalidade essencial, não consequencia, necessariamente, que o preceito constitucional o tenha como elemento essencial do acto, até, porque o acto é evento posterior do procedimento a que respeita a audição, ou, sequer, que o mesmo artigo obrigue o legislador ordinário a atribuir-lhe tal natureza cuja falta haja de ser sancionada com a nulidade, nos termos do art.133º nº 1, do CPA, em vez de o ser, apenas, mediante a sanção regra que o legislador ordinário adoptou para sancionar a ilegalidade dos actos administrativos - a anulabilidade ( art. 135º do CPA ).
 
O que vem dizer-se não impede que, em certos casos, se reconheça ao direito de participação, sob a forma de direito de audição, uma natureza especial tal que demande que a sua violação seja sancionada com o estigma da nulidade própria da afectação do núcleo essencial dos direitos fundamentais (cf. art. 133º, nº 2 alínea d), do CPA).
Será o caso do direito de audiência e de defesa, nos procedimentos contra-ordenacionais e quaisquer processos sancionatórios (art. 32º, nº 10, da CRP) e nos processos disciplinares (art. 269º, nº 3, da CRP). Mas aqui, a configuração como verdadeiro direito subjectivo fundamental não se funda, directamente, no referido art. 267º, nº 5, da CRP, mas em outros preceitos constitucionais, prendendo-se, directamente, não com o interesse da comparticipação dos interessados na formação das decisões ou deliberações administrativas, no processamento da actividade administrativa, compaginante da melhor realização do interesse público e dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, mas com a fixação das condições, necessárias e indispensáveis, à garantia ou à realização "dos direitos fundamentais", impondo-se, então, como um postulado da dignidade da pessoa humana ou por um direito fundamental material em que ela se concretize.
 
Temos, assim, de concluir que o sancionamento da falta do direito de audição, a que se refere o art. 100º do CPA, com a anulabilidade, nos termos do art. 135º do mesmo Código, não viola o disposto no art. 267º, nº 5, da Constituição, nem qualquer outra norma ou princípio constitucional.
 
(...)
Admite-se que, não obstante a regra seja a liberdade de iniciativa, possa ela ser objecto de limitações e restrições que terão de ser justificadas à luz do princípio da proporcionalidade e ressalvar, sempre, o seu núcleo essencial.
Ora, a subordinação da liberdade de estabelecimento à obtenção de alvará sanitário e de licença administrativa de utilização, mesmo para estabelecimentos [de mercearia] já em funcionamento, nos termos do art. 32º do DL nº 370/99 de 16/9, configura-se como um condicionamento legislativo inteiramente justificado à luz do princípio da proporcionalidade, desde logo, até, para tutelar, também, outros bens constitucionais, como sejam os direitos dos consumidores (cf.art. 60º da CRP), em nada afectando o seu núcleo essencial.
Assim sendo importa concluir que o dever de fundamentação não vê reforçada a sua força normativa por via da conectação com tal direito fundamental.
 
Serão situações especiais em que a falta de fundamentação assume, ou uma natureza própria de elemento essencial do acto, acabando por cair debaixo do critério legislativo constante do art.133º, nº1 do CPA, ou uma natureza paralela à de ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental [art. 133º, nº 2, alínea d), do CPA].
Tal acontecerá sempre que, para além da imposição genérica da fundamentação, a lei prescrever, em casos determinados, uma declaração dos fundamentos da decisão em termos tais que se possa concluir que ela representa a garantia única ou essencial da salvaguarda de um valor fundamental da juricidade, ou então da realização do interesse público específico servido pelo acto fundamentando "ou" quando se trate de actos administrativos que toquem o núcleo da esfera normativa protegida [ pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais ] e apenas quando a fundamentação possa ser considerada um meio insubstituível para assegurar uma protecção efectiva do direito, liberdade e garantia"(cf. J.C. VIEIRA DE ANDRADE).
 
No caso, não estamos, nem perante uma situação em que haja ofensa do conteúdo essencial de direito fundamental, nem em face de qualquer destas duas situações especiais.
De tudo, resulta que o legislador ordinário, bem, poderá cominar a sanção da anulabilidade para a falta de fundamentação relativa ao acto administrativo resultante da aplicação do direito considerado ao caso concreto.
 
Decisão
Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrernte, com taxa de justiça que se fixa em 25 UCs.
 
                                                                                                  Marisa Gomes, Patricia Santos, Gonçalo Furtado, Gonçalo Poejo, António Baptista e Duarte Alves, no âmbito do debate realizado
 


 

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