A
fase de instrução entende o momento essencial do procedimento administrativo,
uma vez que incorpora no seu seio o dever de proceder à recolha dos elementos
de facto e de direito úteis para a orientação da decisão final. O dever de realização
de audiência prévia dos interessados, enquanto emanação do imperativo
constitucional contido no 267º/5 CRP, constitui, portanto, a ocasião por
excelência de participação do particular no processo de tomada de decisão,
materializando as exigências democráticas que surgem aqui densificadas, de
acordo com Sérvulo Correia, no
próprio direito de participação. Como bem destacam Marcelo Rebelo de Sousa e André
Salgado de Matos, esta figura tem subjacente uma dupla função, subjectiva
e objectiva, que se traduz na possibilidade dos particulares auscultarem real e
satisfatoriamente o projecto de decisão e, a favor ou contra, se manifestarem,
esclarecendo potenciais dúvidas ou levantando novas questões que possam influir
nos motivos para o acto a ser praticado, bem como faculta à administração
pública um meio de “testar” a eventual consensualidade da sua potencial decisão
e, paralelamente, obter informações que lhe escaparam no processo inquisitório
(possibilidade que o próprio CPA confirma no seu artigo 104º ao dispor que nada
obsta a que a instrução continue após a audiência dos interessados, argumento
irrebatível para a sua inclusão em sede instrutória; em oposição àquilo que o
100º/1 CPA veicula, ao estabelecer que a audiência ocorre após a instrução:
posição que, embora sufragada pelo STA, dificilmente se coaduna com o
imperativo constitucional do 267º/5 CRP).
Apesar
do incumprimento do dever de audiência dos interessados implicar (salvo casos
de recondução a formalidade não fundamental, situação em que deverá prevalecer
o princípio do aproveitamento do acto) a preterição de formalidades essenciais
e, de acordo com a doutrina dominante e sem prejuízo da validade dos argumentos
dos que favorecem outra modalidade de invalidade, consequente anulabilidade, há
casos em que o CPA admite logo o afastamento legítimo deste dever, conforme
dispõe o 103º do referido diploma legislativo.
Ora este artigo perpetua um desvio
aos valores do sistema, pelo que merece, no seu tratamento, toda a atenção e
cuidado científico na busca de uma garantia de que esses casos de dispensa só
ocorram, de facto, em cenários de inevitável impossibilidade e/ou óbvia
redundância de realização da audiência. Assim ocorrerá, primeiramente, em
cenários de urgência ou em que a realização da audiência ponha em causa a
utilidade do acto a praticar (103º/1/a e 103º/1/b CPA respectivamente, sendo
que, como realçam Marcelo Rebelo de Sousa
e André Salgado de Matos, o
legislador parece ter-se equivocado ao enquadrar as situações do 103º/1 CPA
dentro de um operador ex lege de
inexistência de audiência, quando na realidade o número do artigo incorpora nas
suas alíneas uma margem de decisão que obriga à prática de um acto
administrativo de dispensa da audiência), devendo estes conceitos
indeterminados ser aprofundados com o 102º/1 CPA: ou seja, sempre que a decisão
tenha que ser tomada utilmente num prazo incompatível com os 8 dias da
convocação da audiência. Em segundo lugar, será ainda possível a dispensa
quando os interessados já se hajam pronunciado
totalmente sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas
produzidas, nos termos de uma interpretação restritiva do 103º/2/a CPA, e
em situações em que o projecto de decisão seja favorável à universalidade dos
interessados, nos termos do 103º/2/b CPA. O carácter excepcional deste artigo
103º CPA deve, portanto, pesar com particular incidência na delimitação de uma
ampla zona de certeza negativa da discricionariedade dos seus conceitos para que
assim se evite que a prática do acto de dispensa da audiência prévia seja, em
situações de dúvida, admitido.
Resta,
finalmente, chegando ao cerne da exposição, averiguar o cenário contido ainda
no 103º/1/c CPA (aditado pelo DL 6/96), relativo a casos de número excessivo de
interessados, sendo que, aquando de tal ocorrência, deverá a administração ao
invés proceder, quando possível, à convocação de uma consulta pública.
Esta disposição, e concentrando
particularmente e dentro do interesse do tema em apenas na primeira parte da
alínea, encerra em si uma margem de decisão amplíssima que, pela natureza do
seu conteúdo, não se resolve de forma tão simples e conforme ao sistema como no
já exposto caso de urgência. Qual será o número de interessados limite a partir
do qual se torna sensato afastar a audiência? Variará o número consoante o tipo
de acto em causa? E se sim, de que forma? Que tipo de critérios são admitidos
para justificar a dispensa?
Para
responder a estas questões proceder-se-á, desta vez, à consulta e estudo da
jurisprudência, em particular de dois Acórdãos do Supremos Tribunal
Administrativo que procuraram, de forma complementar e socorrendo-se do Parecer
da Procuradoria Geral da República nº 142/2001, publicado no DR-II série, de
10/8/2002, esmiuçar o conteúdo e os reais limites desta disposição.
Em
primeiro lugar o Acórdão STA 0201/02 debruça-se sobre a questão em razão da
impugnação por um particular de um despacho do Presidente do Conselho de Administração
do INFARMED que homolgava a lista da classificação final de um concurso para atribuição de um alvará de
instalação de uma farmácia. O impugnante entendia que a razão da sua baixa
classificação se deveu a uma contrariedade entre documentos sobre a sua
residência, alegando que apenas o documento que surgia como requerido para o
processo de instrução deveria relevar. Num segundo momento, e com maior
importância, alegou ainda a falta de audiência prévia como motivo para a
invalidade do acto, por violação do 100º CPA. A autoridade recorrida
contra-alegou então com a possibilidade da audiência ser dispensada nos termos
do 103º/1/c CPA, em virtude de o número de interessados, que no caso entendia
os 68 candidatos do concurso, tornar
impraticável o procedimento, argumento este que foi, aliás, acolhido pela
sentença a ser então recorrida para o STA.
No
Acórdão, o Tribunal da última instância administrativa realça primeiramente a
origem constitucional do procedimento de audiência dos interessados. Em
seguida, promove uma interpretação teleológica do DL 6/96, que aditou a
referida alínea, segundo a qual se procurou adequar o regime jurídico do
procedimento administrativo aos "procedimentos
em massa", nos quais a audiência individualizada dos interessados e a
ponderação das razões de cada um implica uma sobrecarga tal para a
Administração que a realização da formalidade se apresenta como manifestamente desproporcionada ou até
lesiva, relativamente aos benefícios esperáveis de aperfeiçoamento do processo
decisório a que se destina. Chegados aqui, verifica-se que o legislador não
optou pelo estabelecimento de um número, mas antes pelo uso de dois conceitos
indeterminados: número elevado de interessados e impraticabilidade da
audiência.
A
praticabilidade reconduz-se, de acordo com o referido parecer do PGR
nº142/2007, à possibilidade ou impossibilidade de ouvir todos os interessados e
surge como que paralela à ideia da “natureza das coisas”. Nesse sentido,
entende um condicionamento material que não se reduz, logicamente, à questão
possível/impossível mas significa antes, e reconhecendo o primado da realidade,
que no procedimento os meios estão instrumentalizados no fim, ou seja, a
audiência será impraticável quando, em função do número de candidatos, implique
sacrificar, ainda que parcialmente, a
eficiência do procedimento administrativo, em face da multiplicidade e
complexidade de questões que poderiam surgir em sede de audiência. Logo, a
invocação do 103º/1/c CPA deverá ter como critério não apenas o número de
interessados, mas também o tipo de procedimento e fins específicos por ele
prosseguidos para que a partir daí se possa discernir se o número em causa,
face à complexidade mais ou menos ampla do processo, implicará ou não uma morosidade ou complexidade
comprometedora desses fins específicos ou um custo administrativo
desproporcionado.
Aplicando
estas considerações ao caso concreto, o STA acaba por entender que um procedimento que fundamentalmente se destina
a arbitrar um conflito de pretensões particulares sobre um bem tornado escasso
pela regulamentação administrativa (entenda-se, o lugar de farmácia), não
implica avaliações complexas, até porque a
tarefa administrativa de decisão se limitava à verificação de dados quantificados
predeterminados (como a experiência profissional e o lugar de residência
dos candidatos), de fácil exposição e compreensão acessível, insusceptíveis de
levantarem questões de maior complexidade. Em suma, e conclui, observar a
audiência prévia relativamente a 68 interessados não era impraticável porque
não colocava em causa a eficiência do procedimento, além de que teria permitido
ao particular esclarecer e resolver a sua real situação com, porventura,
implicações no resultado final. O acto impugnado foi, por isso, anulado.
Num
segundo Acórdão, 0293/10, foi de novo o STA chamado a pronunciar-se sobre a
questão, embora com particularidades distintas e que permitem aflorar melhor o
alcance do entendimento que os juízes fazem do 103º/1/c CPA.
Interpunha
então recurso o Conselho de Administração do INFARMED da anulação de uma
deliberação que homolgava, de novo, a lista de classificação final dos
candidatos a um alvará de instalação de farmácia por alegada preterição de
formalidade essencial por incumprimento do dever de audiência dos interessados.
O Conselho alegava a efectiva impraticabilidade deste dever em virtude do
concurso em causa se inserir num único procedimento, designado Plano Nacional
de Abertura de Novas Farmácias ou FARMA, que abrangia 204 sub-concursos, contabilizando um total de mais de 3000 interessados, para os quais
havia sido designado um só júri.
O
Acórdão, seguindo uma orientação que já havia adoptado em situações análogas,
entendeu, logicamente, que há tantos
concursos para a instalação de novas farmácias, quanto as farmácias a instalar.
A particularidade de haver sido nomeado um só júri para todos os concursos
nunca poderia consistir argumento suficiente para afastar a realização das
audiências, até porque cada concurso se reveste de especificidades concretas e
distintos candidatos, todos eles titulares do já referido direito de
participação. Como refere o citado Acórdão, o
que se discute em cada um dos concursos nada tem, necessariamente, a ver com o
que se passa nos restantes.
Serve
este Acórdão para demonstrar que qualquer facto
extrínseco ao procedimento em causa não tem qualquer relevância ou valor em
sede do 103/1/c CPA. A circunstância de a Administração ter nomeado apenas um
júri para todos os concursos, pondo em causa a celeridade e até a eficácia da
decisão, e se servir, mais tarde, desse facto para suprimir formalidades
legalmente obrigatórias aproxima-se, inclusivamente, da figura de teoria geral
de abuso de direito.
Em
conclusão, o direito de participação, enquanto imperativo constitucional
concretizado, nesta sede, no dever de realização de audiência prévia dos
interessados, deve prevalecer salvo, como demonstrado, em cenários de evidente impossibilidade
ou inutilidade. De resto, e em cenários como os do concurso para atribuição de
licença para farmácia, ou seja, em todos os procedimentos destinados “à atribuição unilateral (…) de quaisquer
vantagens ou benefícios” (1º/3 CCP), implicando, desde logo, uma decisão
desfavorável aos demais candidatos, o dever, mais que consubstanciar uma
vinculação ao referido imperativo de participação, favorece a eficiência e
legitimidade da decisão que vier a ser tomada pela administração.
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